A tradicional “época dos incêndios” (seja o que isso for), as operações stop, as pré-épocas dos clubes de futebol, as demais peripécias em zonas balneares e a capacidade de elasticidade informativa dos meios de comunicação habituaram-nos a rechear o espaço público português. Tudo o resto que faz o mundo girar adiava-se até Setembro, o presente solene ficava a cargo dos bombeiros, nadadores-salvadores, polícias e jornalistas sem direito a férias, no entanto, parece que em ano de crise até o catolicismo da silly seasonfoi obrigado a fazer o seu concílio.
Não é que não tenhamos o supracitado em abundância, sem qualquer desprimor pelo suor dos actores sociais em acção, mas parece que este Verão ficará teimosamente na história sem qualquer influência do mau humor de S.Pedro. As razões são várias com raízes profundas em várias estações transactas.
Da campanha eleitoral à realidade
O Galo de Barcelos, Camões, o Fado, os provérbios populares, entre muitas coisas caracterizam o lugar-comum da cultura do rectângulo da Península Ibérica, o que ainda ninguém se lembrou, com forte pena minha, é de instituir oficialmente valores e rituais que têm tanto de tradicional como qualquer um dos referidos, um deles e desde já bastante significativo é a mudança repentina de opinião entre o período da campanha eleitoral e a passagem a governo. Podia referir vários casos históricos, mas fiquemo-nos pelo passado presente.
PSD e CDS, com o fiel apoio de Belém, repetiram à exaustão que o caminho para a saída da crise era escutar os mercados sem os incomodar, cortar nas gorduras do Estado, executar as medidas acordadas com a troika e de preferência ir mais longe, que o crescimento económico e a prosperidade social viriam montados num cavalo branco numa futura manhã de nevoeiro, sem cortes no subsídio de Natal como é óbvio (!). Caso os portugueses optassem por uma solução política diferente, que executasse uma renegociação da dívida, aumentasse a taxação sobre o capital e instaurasse direitos invés de os amputar, como propunha o Bloco de Esquerda, desceríamos ao inferno, e no máximo teríamos direito ao som combinado entre pianos e violinos em backgroundenquanto as trevas não se instalassem de Norte a Sul do país.
Findadas as eleições e empossado o governo de direita, reiniciou-se o tempo da normalização política e comme d’habitudeanunciou-se o corte em 50% do subsídio de natal. Os espíritos da Lapa e do Caldas podiam agora estar descansados, a tradição foi cumprida. Por ironia dos tempos, ou não, do alto da Acrópole entendeu-se acelerar a ritualização dos primeiros dias do novo executivo, e não é que os malandros dos mercados, depois de todo este trabalho de régua e esquadro de violação das promessas eleitorais, desceram o rating da República para Lixo.
Num repente, juntaram-se Belém, opinion makers, Governo, amigos do Governo, Banca Nacional, União Europeia, o BCE, Comendadores, Duque de Bragança e demais indignados de oportunidade, a contestar a autoridade e os interesses das agências de rating privadas. Que infâmia gritaram por aí, que falta de respeito lia-se no pacote de açúcar para acompanhar o café, pois, parece que caiu outra certeza eleitoral, afinal essas instituições de notação são perversas e carregadas de interesses privados, e talvez, o muscular das protecções dos estados contra o sistema financeiro não nos trazem a “highway to hell”. E foi assim que o consenso político se deslocou do respeito pelas instituições do capital financeiro para a defesa de uma agência de notação europeia independente, a pertença ao estatuto público ainda não nos concederam, bem sabemos que o caminho se faz caminhando.
Não fosse já isto assunto suficiente para se arrastar pelos meses de Julho e Agosto, a inevitabilidade das políticas de governanceeuropeias parecem que já não são assim tão inevitáveis, afinal a renegociação era necessária e as certezas de ontem também se esfumam nos dias de hoje, assim entendeu recentemente o establishment, fixando as taxas de juro a 3,5% a um período nunca inferior a quinze anos. Apesar de continuarem a taxas proibitivas para as economias periféricas como Portugal, por estarem a um nível completamente impagável mesmo entre as expectativas mais optimistas sobre o futuro da economia nacional e o cenário patente de recessão. Pelo meio Cavaco Silva veio defender a desvalorização do euro e alterações ao memorando da troika, apesar de rejeitar uma auditoria às contas e uma renegociação total da dívida (o tempo tratará de tornar esta posição socialmente hegemónica), os deuses devem estar loucos, isso é certo para muitos que abanaram bandeiras laranjas e azuis ao vento da certeza da cegueira ideológica.
Os sinais dos tempos são estranhos e convulsos, mas mesmo assim existe tempo para investir entre idas à praia e tardes nas esplanadas, e talvez não fosse má ideia, para algumas cabeças pensantes da maioria intelectual do regime, aproveitarem este superavitde tempo livre para arquivarem de vez as crónicas e afirmações que fizeram nos últimos meses, não vá o diabo tecê-las.
Os monstros
Andreas Brevik será um nome que a cidadania contemporânea não esquecerá tão facilmente, a brutalidade dos seus actos não deixarão que este episódio não fique inscrito na memória colectiva e ainda bem. 76 pessoas perderam a sua vida pelas acções de um terrorista de extrema-direita, que entendeu ter chegado o tempo de começar a sua cruzada contra os infiéis do século XXI. Planeou passo a passo, preparou-se meticulosamente durante anos para que ninguém desconfiasse das suas intenções, das armas às bombas, sem menosprezar o estudo e a fundamentação ideológica que uma iniciativa deste tipo precisa para ganhar corpo político, escreveu mil e quinhentas páginas para que o mundo entendesse as suas intenções, e lhe desse o título tão desejado de “maior monstro nazi desde a “II Guerra Mundial”.
Muito se tem escrito sobre a maior chacina na Noruega em tempos de paz, afirmou-se que o seu responsável era louco, mas o pior que se pode fazer neste período de luto é ver neste terrorista político apenas um insano. Se seguíssemos esse critério descobriríamos que as páginas mais negras da humanidade apenas foram escritas porque os seus responsáveis eram simplesmente dementes e possuídos.
Trata-se de monstros sem dúvida, mas de terrorismo e não de sociopatia, de política e não de psiquiatria, de violação estudada e não de insanidade temporária. Ou alguém se atreveria a enviar Salazar, Franco, Mussolini, Pinochet ou Hitler para um hospício?
Andreas Breivik é um exemplo cru dos imensos atentados contra a dignidade humana, a vida, o respeito, a igualdade e a fraternidade que têm acontecido na Europa. Radicalizou a partir do ponto de partida que muitos líderes europeus criaram, os imensos cantos populistas que se converteram em hinos de regime pelas bocas de Sarkozy, Merkel, Cameron, Berlusconni (…) somadas às inúmeras concessões que se foram fazendo à extrema-direita política por todo o velho continente são adubo para o florescimento de movimentos e acções mais radicais e violentas como estas.
A limitação destes actos parte da iniciativa governativa e das escolhas que se fazem, das ideias que se hegemonizam e dos preconceitos que se criam ou destroem. Árabes, judeus, latinos, negros, chineses (…) e já agora subsidiários, desempregados e pobres.
Por último
O meu medo é que, no meio disto tudo, o Bloco de Esquerda esteja a pensar tornar-se num partido sério. Por favor não deixem morrer o BE – o verdadeiro, cheio de revolta, divertidíssimo e inútil. A política portuguesa ficará muito mais pobre e eu perderei uma das minhas mais estimadas vítimas de bullying.
Assim escreveu Joel Neto na sua crónica na Revista Notícias Sábado (NS’ suplemento do DN e do JN), a propósito do Acampamento Liberdade 2011 organizado pelos Jovens do Bloco de Esquerda, queixando-se que ao contrário de 2008 não se debateu “Imigração e Racismo”, “Biocombustíveis e Crise Alimentar”, “LGBT, Feminismos e Combate Social” e “Drogas Leves”, para passarmos a discutir “temas chatíssimos” como riqueza e pobreza, socialismo, o passado e futuro do Bloco de Esquerda e revoluções árabes.
O cronista ficou preocupado com esta evolução, talvez ande distraído, não é que não tenhamos crescido politicamente, progredido com o debate e empolgado com a realidade que nos contorna, mas não mudamos assim tanto e sobre os temas em questão não alteramos uma linha sobre o que achamos. A sociedade portuguesa e o mundo é que mudaram em muitos deles nestes últimos três anos. Por mais arrogante que isto possa parecer.
Quiçá Joel Neto não se recorde que foi à custa da combatividade dos movimentos sociais e da pressão política do BE que o PS avançou com o projecto de casamento entre pessoas do mesmo sexo, que Cavaco Silva não teve coragem de vetar. Que partiu da nossa bancada a iniciativa de descriminalizar o consumo de drogas que este ano celebrou o seu décimo aniversário envolto de elogios por ser um case studypela positiva no mundo inteiro, ao mesmo tempo que perigosos dirigentes do BE como Jimmy Carter e Koffi Annan defendem a legalização das drogas leves, dada a ineficácia e perversidade dos fins da sua proibição. O que dizer de imigração e racismo quando o mundo parou de rodar chocado com as notícias sangrentas vindas da Noruega ou dos tumultos que têm havido em todos os continentes fruto da escalada de preços dos bens alimentares básicos devido à produção de etanol?
Entendo que não conteste o essencial dos debates que decidiu destacar, bem sabemos como o conservadorismo-liberal português tem desacelerado o pé na crítica à nossa proposta política e económica, não vá amanhã o tempo dar-nos novamente razão. Renegando o bullyingdestaco apenas que o essencial de 2008 voltámos a discutir neste acampamento que passou, o tempo e o modo assim o exigem.
Fica a nota, esteja atento, não vá o tempo passar-lhe a perna…
