Bar Maconhão na ditadura

07 de junho 2025 - 10:31

Anarquistas, socialistas, porras-loucas em mistura. Não havia em todo o Recife e Olinda, um bar com radiola de ficha, a famosa wurlitzer, que tivesse um repertório tão bom quanto o do Maconhão.

porUrariano Mota

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Bar Maconhão
Bar Maconhão

Uma foto no Bar do Peneira, nos Quatro Cantos de Olinda, mostra o Bar Atlântico, que todos conhecemos pelo mais verdadeiro nome de Maconhão. Ele está na foto acima, casa branca e comprida, com um coqueiro à frente. A imagem é solar, mas o Maconhão era o seu espírito e carne como um vampiro, pela noite e madrugada adentro, na década de 70.

Os nomes e o que lembram não são gratuitos. O aumentativo de maconha vinha não só da extensão da casa, um grande salão que se estendia pela frente na praia, que poderia parecer talvez um largo charuto branco. Mas a semelhança não era só física. A origem mesmo vinha pela brisa do mar que soprava em ondas sobre nossas cabeças e olfato o cheiro da erva. Isso embriagava mais rápido, porque de repente estávamos todos de olhos abertos, percepção aguda para a sedução do sexo, mais aéreos, que os adeptos diriam mais relaxados. Ou em estado de excitação. Ora para cima pela vodca e cerveja, ora para baixo pelo cheiro. O perfume das jovens era o patchuli, que aprendemos depois ser uma senha do uso da maconha.

Mas a embriaguez se fortalecia e nos derrubava a todo ser humano pela qualidade da música. Anarquistas, socialistas, porras-loucas em mistura. Não havia em todo o Recife e Olinda, um bar com radiola de ficha, a famosa wurlitzer, que tivesse um repertório tão bom quanto o do Maconhão. Não sei quem, mas acredito que Clodomiro, o dono do bar, devia ter uma assessoria muito especial para trazer somente para o Maconhão os sucessos dos compositores que cantavam nossas vidas. O ex-gerente Peneira, hoje dono do Bar Peneira, esclarece:

“A radiola de ficha, a wurlitzer, tinha disco em formato da radiola exclusivo para o Maconhão. Em nenhum outro bar de Pernambuco se encontravam as músicas que tínhamos lá na radiola de ficha. A gente fazia as escolhas de acordo com as sugestões de alguns clientes. O técnico da wurlitzer fazia o disco no formato da radiola duas cópias pra gente. Maria Betânia, Gal.  Tudo de Chico, Gil, Caetano, Ednardo, o Pavão Misterioso”.

O espaço entre as mesas virava pista de dança, e as leoas passavam com suas jubas aneladas, e os leões às vezes procuravam os seus iguais, a competir com as felinas que desejavam outras.

Vampiro, o Maconhão nos sugava em nossas melhores energias. Ele queria nos reduzir à condição de libertinos pelo sexo de uma noite

“Uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel
Uma mulher, uma beleza que me aconteceu
Esfregando a pele de ouro marrom do seu corpo contra o meu
Me falou que o mal é bom, e o bem, cruel’.

As tigresas passavam e o desejo sem remédio via as ondulações das suas ancas, acompanhavam com os olhos as fêmeas soberanas a caminhar na noite. Os jovens novas feras sem dentes bebiam-nas, porque apesar de sólidas não podiam comê-las.

A esta altura, uma pergunta surge: como tal ambiente de aparência livre existia na ditadura? E a primeira resposta é que a liberação de costumes, à semelhança daquilo que se vê hoje nas novelas da televisão, era permitida. Mas tudo sob a mais disfarçada vigilância. Ali permitiam-se ousadias nos costumes, mas a sombra da repressão à liberdade de consciência era omnipresente. Isso quer dizer: podiam-se tomar atitudes gays, furtivos beijos, apalpadelas de passagem, casuais. Podia-se ouvir, escutar as músicas dos compositores censurados na radiola de ficha, porque, afinal, era só um exercício de sensibilidade. A liberação era permitida sob observação. Os policias faziam de conta que cochilavam, à espera de informações. De repente mostravam a cara. Lembra Peneira:

“No dia da maior batida policial no Maconhão eu estava lá. Prenderam todo o mundo, todo o mundo que estava no bar. Foram presos amigos meus. O Batata, do Bacalhau do Batata, foi preso. Advogados, jornalistas. Cercaram o bar e levaram todos os clientes presos. Foi muita gente presa. Disseram que os clientes eram fumadores de maconha. Esse foi o pretexto.  Foi a Polícia Federal mesmo”.

Naquele ambiente, acreditem, era uma ousadia os shows do ator e dançarino Pernalonga no bar. Como fala Peneira, na época gerente do Maconhão:

“Pernalonga chegava lá e dava show, fechava (era sucesso absoluto de público). A gente discutia quase todo o dia. ‘Eu gosto daqui’, ele dizia.. E ficava. Pernalonga fumava todas, tomava todas, misturava todo tipo de coisa, e tomava conta da pista do bar imitando Carmen Miranda. Subia num banco e cantava e dançava. Era show”. 

Ele cantava em um dos seus números musicais:

“Mamã, mamã, mamãe, eu quero, mamãe, eu quero
Mamãe, eu quero mamar!
Dá a chupeta, ai, dá a chupeta
Dá a chupeta pro bebê não chorar!”

Para as fotos de Pernalonga numa exposição, o grande fotógrafo Xirumba pôs a legenda: “Bar Maconhão, onde a cultura fervia Ao som da Radiola de Ficha, Teatro, Show e muitos Bolero nos Baseados. Com Vocês Perna Longa um Ator das Olindas”

Pernalonga

Pernalonga foi um dos pioneiros do movimento de teatro de revista Vicencial Diversiones, um marco da resistência política e cultural nos anos 70 em Pernambuco. Foi morto, mais adiante, com uma facada na perna em 2000. Perdeu muito sangue e agonizou por horas na rua, sem que ninguém o socorresse. Medo da Aids. O artista chegou morto ao hospital.

E neste momento volta a hora maior da história do Maconhão. O que a memória objetiva de Peneira fala é recuperada de um ponto de vista literário pelo escritor Marco Albertim no romance “Conspiração no Guadalupe”. Marco Albertim deu vida íntima às noites da ditadura no Bar Maconhão. E numa reflexão daqueles anos da noite da cidade de Olinda, no livro os casais se formam e se desfazem.  Eles são amálgama de militantes socialistas e notívagos boêmios. O que vale dizer, políticos contra a ditadura, mas nada ortodoxos, porque feitos do barro da experiência. Como aqui:

“Os quatro cruzaram-se a dois metros um casal de outro. Maújo, àquela altura, julgava Gertrude e Caetano um casal; por sua comodidade com Chica, pela esperança de que a ex-parelha não ficasse deserdada de todo. Seria capaz de sentar na mesma mesa com os quatro juntos, cada par apostando na felicidade do outro; com ou sem o efeito de daiquiris…”

No romance de Marco Albertim há o reconhecimento e a legitimação criadora dos bares da noite de Olinda no tempo da repressão fascista. 

“O Estrela e o Maconhão têm em comum o apodrecimento do ar. Maújo e Chica o sorviam mudos, atenuando indistintas culpas. Acudia-os a sonoridade remota da rumba. Do lado de fora, dois casais tramavam o delírio noutro retiro, em cama multicor, como os olhos chispando liamba”.

Marco Albertim escreveu como ninguém sobre o Maconhão na noite de Olinda. Pela natureza do narrado é a Olinda com os seus intelectuais, artistas, jovens, álcool e fumo também. Esse Maconhão foi o bar de histórias antológicas de quedas, fracassos e encontros. Nele, certa vez um amigo desejou ser solidário a uma professora, que embriagada se deitara ao lado de um cachorro sarnento no chão. Ele pediu que ela se levantasse daquele lugar sujo onde jazia ao lado do cachorro. E ela, rápido, com o sarcasmo no espírito e na boca amarga:

– Por quê? Está com inveja?

Aquilo era o Maconhão, mais conhecido pelo nome civil de Bar Atlântico. . Foi destruído depois, ao lado do Fortim de Olinda, Fortim de São Francisco, ou Fortim do Queijo.


Publicado em Vermelho

Urariano Mota
Sobre o/a autor(a)

Urariano Mota

Jornalista e escritor brasileiro, autor dos romances Dicionário Amoroso do Recife, Soledad no Recife, O Filho Renegado de Deus e A Mais Longa Duração da Juventude.