Habitação

Devolutos: a app que denuncia casas vazias e gerou contestação dos proprietários

30 de junho 2025 - 21:05

Nova app surgiu para denunciar prédios devolutos em Lisboa, com ambição de se expandir para o país todo. Associação Nacional de Proprietários ameaça com tribunal para intimidar iniciativa cidadã.

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Taxem as casas vazias
Website do Taxem as casas vazias.

“Há uma realidade gritante que permanece nas sombras: Portugal tem casas a mais – e continua a deixá-las vazias”. Foi assim que o coletivo Devolutos apresentou a sua aplicação digital cívica com o mesmo nome. É uma app que permite mapear casas e prédios devolutos em Lisboa, com pretensões de chegar a todas as zonas urbanas do país para tornar visível o “parque habitacional subutilizado ou abandonado, em plena crise social”.

De facto, Portugal é o país da OCDE com mais casas por habitante. De acordo com os últimos censos, há cerca de 723 mil casas vazias ou abandonadas e só no distrito de Lisboa são mais de 150 mil. “Não podemos continuar a tratar a habitação como uma mercadoria especulativa. O direito à habitação só será concretizado com o fim do absurdo que é haver tantas casas sem gente, e tanta gente sem casa”, diz em comunicado de imprensa Nelson Vassalo, que juntamente com Hugo Conceição criou a aplicação.

Aquilo a que a app se propõe é “dar aos cidadãos uma ferramenta concreta para identificar, mapear e pressionar a recuperação dos imóveis abandonados”. Está disponível gratuitamente para dispositivos Android e iOS, mas também em versão web para que toda a gente possa denunciar o abandono do património urbano. E já conseguiu mapear 1.000 casas abandonadas em menos de uma semana.

“Mil fachadas abandonadas, portas emparedadas, janelas quebradas, muros fechados ao mundo”, que são também “mil provas de que a crise de habitação não se resolve com retórica bonita, nem com benefícios fiscais, nem com mais construção – resolve-se com coragem e visibilidade”.

“As câmaras municipais conhecem muitos destes imóveis, mas demoram a agir. Com a app Devolutos, queremos mostrar que os cidadãos não estão dispostos a esperar mais. Não é admissível que o património urbano esteja ao abandono enquanto milhares de pessoas vivem em situação de emergência habitacional”, diz Nelson no comunicado.

A acompanhar a aplicação está um manifesto com o título “Taxem! Casas vazias” que propõe uma mudança drástica na fiscalidade da habitação em Portugal com um imposto sobre as casas vazias. “É urgente uma reconfiguração da regulação pública para castigar esta desalocação da função principal dos imóveis e incentivar todos os proprietários de imóveis a garantir que estes servem o seu propósito: habitação de alguém, seja dos próprios ou de inquilinos”, lê-se.

Mas o propósito desta iniciativa cidadã não passou ao lado da Associação Nacional de Proprietários (ANP), que se indignou publicamente com a iniciativa de denúncia de imóveis devolutos em plena crise de habitação. À agência Lusa, a ANP considerou “ilegal” a aplicação e ameaçou “avançar para tribunal”.

O presidente da ANP, António Frias Marques, desresponsabiliza os proprietários e diz que “quem tem de resolver o problema da habitação não são os particulares”. De facto, o papel do Estado é central para a resolução deste problema, só que Frias Marques consegue culpar os inquilinos pela degradação das casas porque estas, diz, “são provenientes de contratos de longa duração, em que os inquilinos se mantiveram na casa durante muitos anos a pagar rendas muito baixas”.

Em resposta, o coletivo Devolutos sublinha que os utilizadores da app não invadem propriedades, não identificam proprietários e não usam dados pessoais. “Só mostramos o que está na rua à vista de todos”.

Comparando essa utilização ao Google Maps, o coletivo diz que “Se a ANP quer realmente fazer dinheiro com ações judiciais, sugerimos que processem a Google primeiro. Têm mais recursos — e muito mais fotos”. E defende que o problema “não é a foto, é o espelho” de um país com quase um milhão de casas vazias. E acabam mesmo por apontar o dedo aos senhorios: “Se os imóveis estão devolutos há décadas, talvez mereçam uma visita. Se estão à espera de obras, façam-nas. Se o proprietário não tem dinheiro para as obras, que liquide o imóvel. Se são para arrendamento, disponibilizem-nos. Se são para hotéis, assumam-no”.

Contra a intimidação da ANP, o coletivo promete continuar a mapear, a partilhar imagens e a expor a crise de habitação e as suas contradições, considerando que “se há algo a ser julgado é o abandono urbano”.