Eixo do Mal 2.0

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José Manuel Rosendo em Meu Mundo Minha Aldeia.

04 de abril 2025 - 13:39
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O que está em causa é os Estados Unidos arrogarem-se o direito de mudar a natureza dos regimes dos países que entenderem e forjarem argumentos para que essa mudança possa ser feita à força, nomeadamente força militar.

Matrioskas de Trump e Putin
Foto de Paul Woodford/Flickr

O “Eixo do Mal” foi a expressão cunhada pelo então presidente norte-americano, George W. Bush, no discurso do Estado da União, quatro meses depois do ataque às Torres Gémeas, em Nova Iorque, a 11 de Setembro de 2001. Coreia do Norte, Irão e Iraque, formavam esse Eixo do Mal que Bush considerava um perigo maior para os Estados Unidos e para o mundo em geral. Foi na sequência desta formulação que os Estados Unidos invadiram o Iraque e Saddam Husseín acabou enforcado. A mudança de regime, que há muito os Estados Unidos defendiam, mudou o Iraque, mas as armas químicas que alegadamente estariam na posse de Bagdad, e que serviram de justificação para a invasão, nunca apareceram. Bush e os aliados não pagaram, até hoje, pelo crime que cometeram.

Não está em causa a natureza dos regimes que Bush incluiu nesse “Eixo do Mal”, porque eram, e continuam a ser, no caso do Irão e da Coreia do Norte, regimes que não respeitam os Direitos Humanos e onde a Democracia e a Liberdade, tal como as entendemos neste extremo ocidental da Europa, são uma miragem. O que está em causa é os Estados Unidos arrogarem-se o direito de mudar a natureza dos regimes dos países que entenderem e forjarem argumentos para que essa mudança possa ser feita à força, nomeadamente força militar.

Mais de duas décadas depois, essa política e arrogância norte-americana não se alterou, com a agravante de estar agora focada em alvos que não têm comparação com aqueles que formavam o “Eixo do Mal”. A Gronelândia e a Dinamarca, o Canadá, o Canal do Panamá e o Golfo do México, foram os alvos imediatamente declarados por Donald Trump logo após a eleição, sempre com o argumento da importância estratégica desses alvos e do que eles representam para a segurança e economia dos Estados Unidos. Donald Trump pensa que pode tudo e coloca-se precisamente no mesmo plano daqueles a quem Bush incluía no tal “Eixo do Mal”. Tornar o Canadá o 51º Estado norte-americano, comprar a Gronelândia, controlar o Canal do Panamá ou mudar o nome do Golfo do México, só porque os Estados Unidos assim o entendem, sem ter em conta que isso afecta Estados soberanos, revela bem perante quem estamos.

A atitude da actual administração norte-americana é um misto de poder, arrogância e alarvidade, como ficou demonstrado recentemente durante a presença do vice-presidente J. D. Vance na Gronelândia. Depois de ser inicialmente anunciada uma visita cultural da mulher de Vance ao território semiautónomo da Dinamarca, ele decidiu juntar-se alegando “que não queria que ela se divertisse tanto sozinha e, por isso, junto-me a ela”. Atitude rufia de alguém a tratar de coisas sérias e que se atreveu ainda a acusar a Dinamarca de não ter feito um “bom trabalho” na ilha, acrescentando que os gronelandeses estariam melhor se fizessem parte dos Estados Unidos.

A amizade de Donald Trump com Vladimir Putin – esse grande democrata e defensor dos Direitos Humanos – também é reveladora. É com ele que Trump quer repartir as riquezas da Ucrânia, não se coibindo de humilhar o convidado Zelensky, publicamente e em directo, na Casa Branca, como forma de abrir caminho à partilha dos despojos de guerra.

Por fim, a aliança inquebrantável de Donald Trump com Benjamin Netanyahu, outro enorme democrata e firme defensor dos Direitos Humanos, especialmente no que diz respeito à população palestiniana nos territórios ocupados por Israel. Foi Trump que deu “carta-branca” a Netanyahu para “resolver” o problema de Gaza, dizendo que apoiaria o primeiro-ministro israelita em tudo o que ele decidisse fazer na Faixa de Gaza. Foi Trump a propor a limpeza étnica dos palestinianos de Gaza, de uma forma que até surpreendeu Netanyahu, na Casa Branca, quando ambos falavam aos jornalistas.

É perante este homem, Donald Trump, com este conjunto de ideias e absoluta ausência de valores, que a União Europeia ainda hesita e “abana o rabo”, não percebendo que um dos objetivos, oculto, embora mal disfarçado, é precisamente destruir a União Europeia. Os atlantistas que sempre endeusaram os Estados Unidos têm um enorme sapo para engolir e ainda não descobriram a porta de saída do problema criado por Trump.

Para os Impérios e para as grandes potências, a diplomacia e o multilateralismo sempre foram uma camuflagem para imporem a sua real vontade e interesse, mas ainda assim existia diálogo, sendo a chantagem menos visível e havendo alguma decência.

Com a atitude de Trump em relação à Gronelândia e ao Canadá, será difícil encontrar argumentos para contrariar as intenções chinesas em relação a Taiwan, as de Putin em relação à Ucrânia ou as de Netanyahu em relação aos territórios palestinianos. A soberania dos Estados passa a ser um conceito vazio; as fronteiras apenas existem até ao dia em que um tanque de guerra decida atravessar a linha; a actual Ordem Internacional morreu; a selva passa a ser o habitat natural das relações internacionais.

Se o “Eixo do Mal” definido por George W. Bush era um perigo para os Estados Unidos e para o mundo em geral, não haverá grandes dúvidas que as ligações Trump/Putin, Trump/Netanyahu, Trump/Milei ou até Trump/Orban, são casos que nos levam a questionar se não haverá um outro “Eixo do Mal”, evidentemente mais refinado e certamente mais poderoso, com centro de comando em Washington. É um enorme perigo para a paz, para a Democracia e para a nossa Liberdade.


Publicado por José Manuel Rosendo a 31 de março de 2025 no blogue Meu Mundo Minha Aldeia.