25 de Abril

“Num cravo cabe outro mundo”: Discurso de Mariana Mortágua no 25 de Abril

25 de abril 2025 - 11:38

No seu discurso na sessão solene dos 51 anos da Revolução, Mariana Mortágua afirmou que a tentativa do Governo de adiar as comemorações “é só a triste confirmação que nem o dia mais feliz consegue iluminar todo o futuro de um povo”. Leia aqui o discurso na íntegra, 

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Mariana Mortágua
Mariana Mortágua na sessão solene dos 51 anos do 25 de Abril. Foto António Pedro Santos/Lusa

Na vila de onde venho há uma feira anual com 445 anos, sempre nos primeiros dias de novembro. Em criança. esperávamos ansiosos pelos primeiros camiões que traziam os carrosséis, e a partir daí as estacas e bancas iam-se estendendo pelas ruas: os cestos em frente ao Castelo, os frutos secos na rua da escola, as roupas até à fábrica e, no centro de tudo, o Largo da Feira, que sempre conheci com o mesmo nome: Largo General Humberto Delgado.

Naquele largo, corri entre crianças desassombradas, que nunca tiveram de fugir ou aprender a medir as palavras. Com o tempo percebi que, no Alentejo, basta olhar para trás do ombro para ver as marcas da miséria e da violência assim não distante.

Na casa onde cresci, não havia alentejanos, mas vivia um homem cujas histórias de pobreza, trabalho e resistência ouvi como testemunhos de uma outra vida. O 25 de abril foi o dia mais feliz da sua vida e, agora que penso nisso, o dia mais feliz para toda a gente que entrava em nossa casa em Alvito. 

Hoje, dia 25 de abril, celebramos os 51 anos da Revolução, porque a democracia tem de saber a data em que nasceu. Que o Governo de Portugal esteja disposto a adiar as comemorações do 25 de abril, é só a triste confirmação que nem o dia mais feliz consegue iluminar todo o futuro de um povo.

Durante meio século, a Revolução de abril estancou a peste do racismo e do autoritarismo e por isso, aos Capitães de Abril e a todos que lutaram, quero dizer, obrigada. Cumpriram a vossa missão, agora é a nossa vez. Este é o tempo que nos calhou viver.   

Depois de quebrar promessas e devastar o legado de gerações, o capitalismo saiu da sua crise mostrando o que vale, rindo-se da desigualdade e dividindo povos. Essa política gerou os seus políticos: Donald Trump, Javier Milei, Georgia Meloni, Viktor Órban. Eles levantam a motosserra para dizer quem está primeiro e quem fica para trás, decidem as palavras que se gritam e as que são para apagar e escolhem que mortes são legítimas.

Os novos devotos desta política são os seus maiores fanáticos, a começar pelos donos das máquinas de consenso que dominam as redes comunicação global, os algoritmos que pervertem interações, que manipulam comportamentos e viciam a informação. Uma oligarquia planetária que impõe uma concentração de riqueza nunca vista pela humanidade, enquanto faz submergir no desespero áreas cada vez mais vastas da Terra. Os descartáveis contam-se aos milhões.

Há um ano, foi aqui denunciado o genocídio iniciado por Israel na Palestina. Desde esse dia, o Estado de Israel matou mais 17 mil pessoas na Faixa de Gaza, em grande parte crianças. A indiferença da Europa perante o crime a que assiste em direto prova que a política dos novos fascismos faz caminho.

Quando olhamos para gente como nós e não nos reconhecemos, não foram eles que perderam a humanidade, fomos nós. E é por isso que Gaza é a fronteira da humanidade.

Os descartados estão sob os escombros de Gaza e de Odessa, em campos de concentração para migrantes nas fronteiras da Europa, na pobreza extrema de África, nos guetos sociais. E quando nos falam das maravilhas da inovação industrial proporcionada pela corrida aos armamentos e nas vantagens de poupar em cuidados de saúde e na transição climática para investirmos mais na construção de mísseis, começamos a perceber que qualquer um de nós, ou dos nossos filhos, pode tornar-se um descartável.

De que serve adiar as comemorações do 25 abril se as palavras de Francisco são tão cinicamente ignoradas? As últimas que disse, denunciando o delírio da guerra, e especialmente as pronunciadas em Lisboa - todos, todos, todos. Incluindo os sobreviventes da Palestina, as pessoas ciganas, as mulheres, os migrantes. 

Senhor presidente, Senhoras e senhores deputados

O 25 de abril cumpriu-se com o fim da censura e com as eleições livres, as primeiras em que as mulheres votaram em igualdade e liberdade. Mas a força da derrota da ditadura perdurou porque foi inscrita num texto até hoje rejeitado pelos herdeiros de Salazar, a Constituição. Ela não foi só uma carta de liberdades - que foi. Ela traduziu uma ideia de país que se realizava já pelas mãos do povo. 

O 25 de abril de 1974, a libertação, e o 25 de abril de 1975, as eleições, são a democracia e o voto livre mas são também uma ideia de país. Um povo que jurou nunca mais ter que medir as palavras que não sabia sequer escrever, e que decidiu que a escola, e a saúde, e a casa eram para todos, todos, todos.

E o 25 de abril é também uma ideia de mundo -  de como olhamos o mundo como povo de Portugal. Vamos comemorar este ano os 50 anos das independências africanas. Há 50 anos, as feridas da guerra colonial estavam ainda bem abertas, depois da barbárie do racismo feito extermínio e do regresso traumatizado de milhares de portugueses.

E foi nesse momento difícil que Portugal soube constituir-se como país de paz, que não ameaça ninguém nem é ameaçado por ninguém, de respeito pelo direito dos povos à autodeterminação e de desejo de cooperação sem blocos militares.

Hoje, é esse 25 de abril que fala contigo, com confiança e sem rancor, a ti que cresceste em liberdade e não vês que mais tem para te dar a democracia.

Esse 25 de abril ainda está aqui. Perante o sequestro do mundo pelos novos militarismos, pelos impérios assanhados em guerras comerciais e pela disputa de áreas de influência, declaramo-nos herdeiros dessa vontade de Portugal no mundo, desse testemunho atual.

É esse 25 de abril que te fala. A ti, a quem pediram que aguentasses a troika, a pandemia e a inflação e agora tens 30, 40 anos e contas trocos para pagar uma casa.

É esse 25 de abril que te fala, a ti que não poupaste uma hora de descanso para que os teus filhos pudessem estudar, e tudo o que ficou é o orgulho de teres conseguido, muito mérito e pouco dinheiro.

É esse 25 abril que te fala a ti, que fizeste tudo certo para no fim sair tudo errado, e a ti, que só conheceste a sorte do jogo viciado. A imaginação de um Portugal justo e solidário, como na história nunca existiu, esse 25 de abril ainda está aqui.

Admiro os jovens que hoje olham apreensivamente as ameaças do novo fascismo. Ao contrário de mim quando tinha a tua idade e aprendia a ser gente no Largo do General sem Medo, tu hoje sabes perfeitamente que a democracia não está vacinada contra o mal do nosso tempo. Vês o discurso de ódio a entrar pelos pátios da escola, pela rua, pelo telemóvel. E apesar dessa ameaça e dessa apreensão, sais à rua de cravo na mão. Este é o tempo que nos calhou viver, e para o enfrentar temos connosco o segredo que Celeste Caeiro um dia contou a Portugal: num cravo cabe outro mundo.