Memória

O dia em que Gramsci enfrentou o fascismo no Parlamento

16 de maio 2025 - 10:13

Há cem anos, a voz singular do dirigente do Partido Comunista de Itália desafiou diretamente Mussolini. O fascismo estava em vias de destruir qualquer vestígio de democracia e Gramsci seria preso pouco mais de um ano depois. A sua intervenção é um documento histórico que revelamos na íntegra.

porCarlos Carujo

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Gramsci
Gramsci

1- 16 de maio de 1925. Uma voz diferente irrompe no Palácio Montecitorio, sede do parlamento italiano. Diferente no tom, fraca no volume mas firme, pouco encaixável nos excessos da retórica parlamentar italiana da época. Os outros deputados, e o próprio chefe de governo Mussolini, aproximam-se e curvam-se para a frente para o tentar ouvir, mãos nos ouvidos, dizem crónicas da época. O líder fascista, que cerca de quatro anos antes se tinha referido nesse mesmo parlamento a ele como “ um sardo corcunda e professor de economia e filosofia, de cérebro indubitavelmente poderoso”, interrompe-o de vez em quando. As provocações vêm também de vários outros deputados. Apesar disso, a voz, certamente também diferente no conteúdo para os ouvidos fascistas que hegemonizavam por completo a casa, faz-se escutar.

Ouvia-se nesse plenário então, pela primeira e única vez, a voz de Antonio Gramsci, brevemente secretário-geral do Partido Comunista de Itália. Pouco mais de um ano depois estava já na prisão, de onde só o deixaram sair mais de dez anos depois, moribundo, para poderem dizer que não tinha morrido sob custódia…

É o próprio que conta, em carta à sua mulher Julia, de 25 de maio, que sentiu que os fascistas lhe tinham dado “um tratamento de favor”. Portanto, “de um ponto de vista revolucionário comecei com um insucesso”, lança ironicamente. E descreve: “como tenho a voz baixa, reuniram-se à minha volta para me escutar e deixaram-me dizer o que queria, interrompendo-me continuamente unicamente para fazer desviar o fio do discurso mas sem vontade de sabotagem. Eu, divertia-me a escutar o que diziam, mas não me consegui coibir de responder, o que fez o jogo deles porque me cansei e não consegui seguir a linha que tinha previsto dar à minha intervenção”.

 

2- A linha traçada e de que se desvia face a algumas das invetivas fascistas era uma análise da proposta de uma lei que tinha como objetivo “disciplinar a atividade das associações, organizações e instituições e a pertença dos funcionários públicos”. O pano de fundo da discussão era o ataque dos fascistas à maçonaria que ainda resistia às suas ofensivas em algumas das esferas do Estado. Falava-se amplamente de maçonaria mas o texto não a visava especificamente. O dirigente comunista tratou de mostrar precisamente isso, considerando que seria o preâmbulo de uma “perseguição sistemática” contra a oposição anti-fascista e o partido que dirigia em particular. A linha de raciocínio histórico-política sobre os fundamentos do poder burguês italiano e os seus projetos políticos desembocava assim numa conclusão que era tudo menos surpreendente. Esta repressão era na altura uma realidade bem clara, mas ainda não vertida cabalmente nas leis. Estávamos nas vésperas das chamadas leis fascistíssimas desmantelarem definitivamente o regime parlamentar liberal.

 

3- Contudo, o parlamento em que Gramsci fala é já apenas uma farsa dessa democracia liberal, tingido indelevelmente pela violência fascista nesse momento de aceleração da fascistização do país.

A violência dos bandos arruaceiros de squadristi era marca do fascismo desde o início do movimento. Ataques que foram causando vários mortos ao longo do seu processo de ascensão ao poder. Mas, perto de um ano antes, tinha sido a vez do deputado socialista Matteotti. A voz deste, mais costumeira nas lides parlamentares italianas, tinha deixado também uma impressão forte nesse mesmo local a 30 de maio de 1924. O deputado ousara denunciar a fraude e a violência eleitoral fascista. Esta infetava todo um processo eleitoral já viciado pela Lei Acerbo, de novembro de 1923, que mudou a lei eleitoral para dar uma maioria de dois terços à força que vencesse as eleições, abrindo caminho para não ficar pedra sob pedra do regime democrático burguês vigente.

Matteotti acaba por ser assassinado poucos dias depois por um bando fascista. A comoção gerada pelo crime causou a primeira grande crise do fascismo. A oposição sai do parlamento e reúne à parte aquilo que vai ser chamado a “secessão Aventina” que se perde em longas sessões infrutíferas, do ponto de vista dos comunistas que pugnavam por uma unidade antifascista que passasse por uma ação de massas. Não encontram eco e, em novembro, os 19 deputados do PCdI deixam o parlamento Aventino para, durante um breve período, voltarem a fazer frente aos fascistas no Parlamento, apesar de esta certamente estar longe de ser a sua prioridade.

 

4- A 12 de setembro desse ano, outro crime tinha sido importante para começar a virar a maré, o assassinato do deputado fascista Armando Casalini que permitiu justificar um aumento da repressão. Mas o grande momento de viragem só chega a 3 janeiro de 1925. Mussolini discursa no Parlamento, assumindo “a responsabilidade política, moral, histórica de tudo o que aconteceu…” e abrindo caminho para a ditadura assumida. “Se o fascismo é uma associação de delinquentes, eu sou o chefe dessa associação de delinquentes”, acrescenta, vincando que “dentro de 48 horas após o meu discurso, a situação estará esclarecida”.

Pouco depois nesse mesmo dia, o seu ministro do Interior, Luigi Federzoni, comunica por telégrafo aos prefeitos que devem proceder ao “encerramento de todos os círculos e ajuntamentos politicamente suspeitos”, à “dissolução de todas as organizações que sob qualquer pretexto possam reunir elementos turbulentos ou que em qualquer caso tendam a subverter os poderes do Estado”, à “vigilância dos comunistas e subversivos que apresentem indícios ou suspeitas de atividade criminosa”.

Também por telégrafo convidavam-se os mesmos prefeitos a aplicar a lei de julho de 1924 com o objetivo de “reprimir os abusos da imprensa periódica”. Sob o pretexto de contrariar “notícias falsas e tendenciosas, capazes de perturbar a ordem pública”, os autarcas deviam apreender os jornais com notícias desfavoráveis. Esta lei possibilitara também aos fascistas tomarem controlo de jornais que se posicionassem contra si por fazerem “propaganda anti-nacional”.

Ainda não era suficiente para o controlo total do Estado. E já depois da discussão da lei sobre a maçonaria, os atentados contra Mussolini em 1926 tornaram-se mais um pretexto para intensificar ainda mais repressão. As chamadas “leis fascistíssimas” vão acabar por fazer o poder do governo prevalecer sobre o parlamento, tornar os prefeitos, e portanto o poder local, dependentes da nomeação do executivo, culminar a destruição da liberdade de imprensa, fazendo com que todo o diretor de um jornal tivesse de passar pelo crivo dos prefeitos fascistas e depois instaurando a censura, acabar com a liberdade sindical, instaurar finalmente o regime de partido único, proibindo todos as organizações contrárias ao regime, criar uma polícia política e um “tribunal especial para a defesa do Estado” para julgar dissidentes, reinstituindo-se a pena de morte para “delitos” políticos.

Este processo lembra-nos que o fascismo não era uma ideologia pré-fabricada, não nasceu de um só golpe, foi um processo.

Em meados de maio de 1925, esse desfecho podia parecer para muitos como estando longe. Havia quem não se enganasse. A iniciativa em discussão era ainda apenas uma das primeiras tentativas legislativas de consolidar esse caminho.


A intervenção de Gramsci

Presidente: Tem a palavra o honorável Gramsci.

Gramsci: O projeto de lei contra as sociedades secretas foi apresentado a esta Assembleia como um projeto de lei contra a maçonaria; este é o primeiro ato real do fascismo para afirmar aquilo a que o Partido Fascista chama a sua revolução. Nós, como partido comunista, queremos procurar não só a razão para a apresentação deste projeto de lei contra as organizações em geral, mas também o significado da razão pela qual o Partido Fascista apresentou esta lei como dirigida principalmente contra a maçonaria.

Somos dos poucos que levaram o fascismo a sério, mesmo quando o fascismo não parecia mais do que uma farsa sangrenta, quando a propósito do fascismo se repetiam apenas os lugares comuns da “psicose de guerra”, quando todos os partidos procuravam adormecer a população trabalhadora apresentando o fascismo como um fenómeno superficial, de muito curta duração.

Em novembro de 1920, previmos que o fascismo tomaria o poder – uma coisa então inconcebível para os próprios fascistas – se a classe operária não tivesse tido tempo para travar, com armas, o seu avanço sangrento.

O fascismo, portanto, afirma hoje praticamente querer “conquistar o Estado”. O que significa esta expressão, agora tornada um lugar comum? E que significado tem, neste sentido, a luta contra a maçonaria?

Como consideramos que esta fase da “conquista fascista” é uma das mais importantes sofridas pelo Estado italiano e, pela nossa parte, por sabermos que representamos os interesses da grande maioria do povo italiano, os operários e os camponeses, acreditamos que é necessária uma análise, mesmo que apressada, da questão.

O que é a Maçonaria? Vocês falaram longamente sobre o significado espiritual, as correntes ideológicas que ela representa, etc.; mas tudo isso são formas de expressão que utilizam apenas para se enganarem reciprocamente, sabendo que o estão a fazer.

A Maçonaria, dada a forma como foi constituída a unidade em Itália, dada a fraqueza inicial da burguesia capitalista italiana, foi o único partido real e eficiente que a classe burguesa teve durante muito tempo. Não se deve esquecer que, pouco menos de vinte anos após a entrada dos piemonteses em Roma, o parlamento foi dissolvido e o corpo eleitoral de cerca de três milhões foi reduzido a 800 mil.

Isto foi uma confissão aberta por parte da classe burguesa de ser uma minoria ínfima da população, se após vinte anos de unidade foi forçada a recorrer a medidas mais extremas de ditadura para manter o poder, para esmagar os seus inimigos de classe, que eram os inimigos do Estado unitário.

Quais eram estes inimigos? Eram principalmente o Vaticano, os Jesuítas, e é preciso recordar ao honorável Martire que, para além dos jesuítas que usam o hábito, existem jesuítas leigos, que não têm qualquer símbolo especial que indique a sua ordem religiosa.

Nos primeiros anos após a fundação do reino, os jesuítas revelaram expressamente, numa série de artigos publicados na Civiltà cattolica, o programa político do Vaticano, o das classes que eram representadas pelo Vaticano, isto é, as velhas classes semifeudais, tendencialmente apoiantes dos Bourbon no Sul, ou tendencialmente apoiantes dos austríacos na Lombardia-Veneto, numerosas forças sociais que a burguesia capitalista nunca conseguiu conter, embora no período do Risorgimento representasse um progresso e um princípio revolucionário. Os jesuítas da Civiltà cattolica, ou seja o Vaticano, fizeram do primeiro ponto do seu programa político a sabotagem do Estado unitário, através da abstenção parlamentar, da obstrução do Estado liberal em todas as suas atividades que pudessem corromper e destruir a velha ordem; o segundo ponto, a criação de um exército rural de reserva para se colocar contra o avanço do proletariado, pois desde 71 os jesuítas previam que no campo da democracia liberal nasceria o movimento proletário, que se desenvolveria num movimento revolucionário.

O Honorável Martire declarou hoje que a unidade espiritual da nação italiana, à custa da maçonaria, foi finalmente alcançada.

Uma vez que a maçonaria em Itália representou a ideologia e a organização real da classe burguesa capitalista, quem é contra a maçonaria é contra o liberalismo, é contra a tradição política da burguesia italiana. As classes rurais, que no passado foram representadas pelo Vaticano, são hoje representadas principalmente pelo fascismo; é lógico que o fascismo tenha substituído o Vaticano e os jesuítas na tarefa histórica, através da qual as classes mais atrasadas da população colocam sob o seu controlo a classe que foi progressiva no desenvolvimento da civilização; este é o significado da realização da unidade espiritual da nação italiana, que teria sido um fenómeno de avanço há cinquenta anos; e hoje é, em vez disso, o maior fenómeno de regressão…

A burguesia industrial não foi capaz de abrandar o movimento operário, não foi capaz de controlar o movimento operário, nem o movimento revolucionário rural. Assim, a primeira palavra de ordem instintiva e espontânea do fascismo, após a ocupação das fábricas, foi esta: “Os rurais controlarão a burguesia urbana, que não sabe ser forte contra os trabalhadores.”

Se não me estou a enganar, na altura, Honorável Mussolini, não era essa a sua tese, e entre o fascismo rural e o fascismo urbano disse que preferia o fascismo urbano... (Interrupções)

Mussolini: Tenho de o interromper para lhe recordar um artigo meu em louvor do fascismo rural em 1921-22.

Gramsci: Mas este não é um fenómeno puramente italiano, por muito que em Itália, por causa da maior debilidade do seu capitalismo, tenha tido o seu maior desenvolvimento; é um fenómeno europeu e mundial, de extrema importância para a compreensão da crise geral do pós-guerra seja no domínio da atividade prática ou no domínio das ideias e da cultura.

A eleição de Hindenburg na Alemanha, a vitória dos conservadores em Inglaterra, com a liquidação dos respetivos partidos liberais democráticos, são o equivalente do movimento fascista italiano; as velhas forças sociais, embora não completamente absorvidas por ele, tomaram o controlo da organização dos Estados, trazendo na sua atividade reacionária todo um fundo de ferocidade e de decisão despiedada que sempre lhes foi própria; mas, em substância, temos um fenómeno de regressão histórica que não é nem será desprovido de implicações para o desenvolvimento da revolução proletária. Examinada nesta base, será que a atual lei contra as associações será uma força ou estará, pelo contrário, destinada a ser completamente inútil?

Corresponderá à realidade, poderá ser um meio de estabilizar o regime capitalista ou será apenas um novo instrumento aperfeiçoado dado à polícia para prender Fulano, Beltrano e Sicrano? O problema é então o seguinte: a situação do capitalismo em Itália foi reforçada ou enfraquecida depois da guerra, pelo fascismo? Quais eram as debilidades da burguesia capitalista italiana antes da guerra, debilidades que levaram à criação daquele sistema político maçónico que existia em Itália e que teve o seu máximo desenvolvimento no Giolittismo?

As maiores debilidades da vida nacional italiana eram, em primeiro lugar, a falta de matérias-primas, ou seja, a impossibilidade de a burguesia criar em Itália uma indústria que tivesse raízes profundas no país e que pudesse desenvolver-se progressivamente, absorvendo o excedente de mão de obra. Em segundo lugar, a inexistência de colónias ligadas à pátria mãe, ou seja, a impossibilidade de a burguesia criar uma aristocracia operária que pudesse estar permanentemente aliada à própria burguesia. Em terceiro lugar, a questão meridional, ou seja, a questão dos camponeses, estreitamente ligada ao problema da emigração, que é a prova da incapacidade da burguesia italiana de manter… (Interrupções).

Mussolini: Os alemães também emigraram aos milhões.

Gramsci: O significado da emigração em massa dos trabalhadores é este: o sistema capitalista, que é o sistema dominante, não é capaz de dar comida, habitação e vestuário à população, e uma parte não insignificante desta população é forçada a emigrar…

Rossoni: Portanto, a nação deve expandir-se no interesse do proletariado.

Gramsci: Temos a nossa própria conceção de imperialismo e do fenómeno colonial, segundo a qual estes são, acima de tudo, uma exportação de capital financeiro. Até agora, o “imperialismo” italiano tem consistido apenas nisto: o operário italiano emigrado trabalha para o lucro dos capitalistas de outros países, ou seja, até agora a Itália tem sido apenas um meio de expansão para o capital financeiro não italiano. Vocês enchem sempre a boca com a afirmação muito pueril de uma pretensa superioridade demográfica da Itália em relação a outros países; vocês dizem sempre, por exemplo, que a Itália é demograficamente superior à França. Esta é uma questão que só as estatísticas podem resolver perentoriamente, e eu por vezes ocupo-me com estatísticas; ora uma estatística publicada depois da guerra, e nunca desmentida, e que não pode ser desmentida, afirma que a Itália de antes da guerra, do ponto de vista demográfico, já estava na mesma situação que a França depois da guerra; isto é determinado pelo facto de a emigração retirar do território nacional uma tal massa de população masculina, economicamente ativa, que as relações demográficas se tornam catastróficas. No território nacional permanecem os velhos, as mulheres, as crianças, os inválidos, ou seja, a parte inativa da população, que pesa mais do que em qualquer outro país, mesmo em França.

E esta é a fraqueza fundamental do sistema capitalista italiano, pelo qual o capitalismo italiano está destinado a desaparecer ainda mais rapidamente, uma vez que o sistema capitalista mundial já não consegue absorver a emigração italiana, explorar o trabalho italiano, que o nosso capitalismo é impotente de organizar.

Os partidos burgueses, a maçonaria, como é que tentaram resolver estes problemas?

Na história italiana, conhecemos os dois últimos planos políticos da burguesia para resolver a questão da governação do povo italiano. Tivemos o programa Giolitti, a colaboração do socialismo italiano com o Giolittismo, ou seja, a tentativa de estabelecer uma aliança da burguesia industrial com uma certa aristocracia operária do norte para oprimir, para submeter a esta formação burguês-proletária a massa do campesinato italiano, especialmente no Mezzogiorno. O programa não teve sucesso. Na Itália setentrional, formou-se, de facto, uma coligação burguesa-proletária através da colaboração parlamentar e da política das obras públicas para as cooperativas; na Itália meridional, a classe dirigente está corrompida e domina as massas com capangas…

(Interrupções do Deputado Greco)

Vocês, fascistas, foram os principais autores do fracasso deste programa político, pois nivelaram pela mesma miséria a aristocracia operária e o campesinato pobre de toda a Itália.

Tivemos um programa que poderíamos chamar o do Corriere della sera, um jornal que representa uma força nada desprezível na política nacional: 800.000 leitores são também um partido.

Vozes: Menos…

Mussolini: Metade! E os leitores dos jornais não contam. Nunca fizeram uma revolução. Os leitores dos jornais enganam-se regularmente!

Gramsci: O Corriere della sera não quer fazer a revolução.

Farinacci: Nem o l'Unità.

Gramsci: O Corriere della sera apoiou sistematicamente todos os políticos do Mezzogiorno, de Salandra a Orlando, a Nitti, a Amendola; perante a solução Giolitti, opressiva não só para classes, mas também para territórios inteiros, como o Mezzogiorno e as ilhas, e, portanto, tão perigosa como o fascismo atual para a mesma unidade material do Estado italiano, o Corriere della sera apoiou sempre uma aliança entre os industriais do Norte e uma certa vaga democracia rural, sobretudo meridional, com base no comércio livre. Uma e outra solução tendiam essencialmente a dar ao Estado italiano uma base mais alargada do que a que tinha originalmente, e tendiam a desenvolver as “conquistas” do Risorgimento.

O que é que os fascistas propõem contra estas soluções? Propõem uma lei supostamente contra a maçonaria; afirmam querer conquistar assim o Estado. Na realidade, o fascismo luta contra a única força efetivamente organizada que a burguesia tem em Itália, para a suplantar na ocupação dos lugares que o Estado dá aos seus funcionários. A “revolução” fascista é apenas a substituição de um pessoal administrativo por outro.

Mussolini: De uma classe por outra, como aconteceu na Rússia, como acontece normalmente em todas as revoluções, como faremos metodicamente! [Aplausos].

Fascismo

Os liberais adoraram Mussolini e a sua austeridade

por

Clara E. Mattei | Jacobina

29 de abril 2024

Gramsci: Só é revolução aquela que se baseia numa nova classe. O fascismo não se baseia em nenhuma classe que não estivesse já no poder…

Mussolini: Mas se uma grande parte dos capitalistas está contra, mas se eu vos enumerar os grandes capitalistas que votam contra nós, que estão na oposição: os Mottas, os Contis…

Farinacci: E eles subsidiam jornais subversivos! (Comentários)

Mussolini: A alta banca não é fascista, e vocês sabem disso!

Gramsci: A realidade, então, é que a lei contra a maçonaria não é principalmente contra a maçonaria; com os mações, o fascismo chegará facilmente a um compromisso.

Mussolini: Os fascistas queimaram as lojas maçónicas antes de fazerem a lei! Por isso, não há necessidade de um compromisso.

Gramsci: O fascismo usa contra a maçonaria, intensificando-a, a mesma tática que usou contra todos os partidos burgueses não fascistas: primeiro criou uma célula fascista nesses partidos; depois tentou extrair de outros partidos as forças mais úteis para si, não conseguindo obter o monopólio como pretendia…

Farinacci: E chama-nos idiotas?

Gramsci: Só não seriam idiotas se soubessem resolver os problemas da situação italiana…

Mussolini: Vamos resolvê-los. Já resolvemos muitos deles.

Gramsci: O fascismo não conseguiu absorver completamente todos os partidos na sua organização. Com a maçonaria utilizou a tática política do entrismo, depois o sistema terrorista do incendiar de lojas e, finalmente, começa hoje a ação legislativa, através da qual certas personalidades da alta banca e da alta burocracia acabarão por ceder aos dominadores para não perderem os seus empregos, mas com a maçonaria o governo fascista terá de chegar a um compromisso. O que é que se faz quando o inimigo é forte? Primeiro, parte-se-lhe as pernas, depois faz-se um compromisso a partir de uma condição de evidente superioridade.

Mussolini: Primeiro parte-se-lhes as costelas, depois prendem-se, como vocês fizeram na Rússia! Fizeram os vossos prisioneiros e mantêm-nos presos, e precisam de o fazer! (Comentários)

Gramsci: Fazer prisioneiros significa exatamente fazer compromissos: por isso dizemos que, na realidade, a lei é feita especialmente contra as organizações operárias. Perguntamos por que razão, de muitos meses a esta parte, sem que o Partido Comunista tenha sido declarado ilegal, os carabinieri prendem os nossos camaradas sempre que os encontram numa reunião de pelo menos três…

Mussolini: Estamos a fazer o que vocês fazem na Rússia...

Gramsci: Na Rússia há leis que são cumpridas: vocês têm as vossas próprias leis…

Mussolini: Vocês fazem rusgas formidáveis. Fazem-no muito bem! (Risos)

Gramsci: Na realidade, o aparelho policial do Estado já considera o Partido Comunista uma organização secreta.

Mussolini: Isso não é verdade!

Gramsci: Entretanto, qualquer pessoa, sem ser acusada de nenhum crime específico, encontrada numa reunião de três pessoas, é atirada para a prisão, só porque é comunista.

Mussolini: Mas são logo libertados. Quantos estão na prisão? Nós apanhamo-los só para saber quem são!

Gramsci: É uma forma de perseguição sistemática que antecipa e justificará a aplicação da nova lei. O fascismo está a adotar os mesmos sistemas que o governo de Giolotti. Estão a fazer o mesmo que os capangas de Giolotti fizeram no Mezzogiorno quando prenderam eleitores da oposição… para saber quem eram.

Uma voz: Só houve um caso disso. Você não conhece o Sul.

Gramsci: Eu sou do Sul!

Mussolini: A propósito da violência eleitoral, lembro-lhe um artigo de Bordiga que a justifica plenamente!

Greco Paolo: Você, Honorável Gramsci, não leu esse artigo.

Gramsci: A nossa não é a violência fascista. Temos a certeza de representar a maioria da população, de representar os interesses mais essenciais da maioria do povo italiano; a violência proletária é, portanto, progressiva e não pode ser sistemática. A vossa violência é sistemática e sistematicamente arbitrária porque representam uma minoria destinada a desaparecer. É preciso dizer à população trabalhadora o que é o vosso governo, como se comporta o vosso governo, para organizar contra vocês, para preparar para vos derrotar. É muito provável que também nós nos vejamos obrigados a utilizar os mesmos sistemas que vocês, mas como transição, ocasionalmente... (Ruídos, interrupções).

Claro: usar os mesmos sistemas que vocês, com a diferença de que vocês representam a minoria da população, enquanto nós representamos a maioria. (Interrupções, ruídos)

Farinacci: Mas então, porque não fazes a revolução? Estás destinado ao mesmo fim que o Bombacci! Vão expulsar-te do partido!

Gramsci: A burguesia italiana, quando fez a unificação, era uma minoria da população, mas como representava os interesses da maioria, mesmo que esta não a seguisse, conseguiu manter-se no poder. Vocês venceram pelas armas, mas não têm nenhum programa, não representam nada de novo nem de progressivo. Apenas ensinaram à vanguarda revolucionária como só as armas, em última análise, determinam o sucesso dos programas e dos não-programas… (Interrupções, comentários).

Presidente: Não interrompam!

Gramsci: Esta lei não fará nada para abrandar o movimento que vocês próprios estão a preparar no país. Uma vez que a maçonaria entrará em massa no partido fascista e formará uma tendência dentro dele, é claro que com esta lei esperam impedir o desenvolvimento de grandes organizações operárias e camponesas. Este é o valor real, o verdadeiro significado da lei.

Alguns fascistas ainda se lembram vagamente dos ensinamentos dos seus velhos mestres, de quando eram revolucionários e socialistas, e acreditam que uma classe não pode permanecer permanentemente enquanto tal e desenvolver-se até à conquista do poder sem ter um partido e uma organização que reúna a sua parte melhor e mais consciente. Há algo de verdadeiro nesta sinistra perversão reacionária dos ensinamentos marxistas. É certamente muito difícil que uma classe possa alcançar a solução dos seus problemas e atingir os fins que estão inscritos na sua existência e na força geral da sociedade, sem que uma vanguarda se constitua e conduza esta classe à realização de tais fins.

Há algo de verdadeiro nesta sinistra perversão reacionária dos ensinamentos marxistas. É certamente muito difícil para uma classe alcançar a solução dos seus problemas e atingir os fins que estão incorporados na sua existência e na força geral da sociedade, sem que uma vanguarda se constitua e leve esta classe à realização destes fins.

Mas não se diga que esta afirmação é sempre verdadeira, na sua mecanicidade exterior para uso da reação! Esta é uma lei que serve para Itália, que deve ser aplicada em Itália, onde a burguesia não conseguiu de forma alguma e nunca conseguirá resolver em primeiro lugar a questão do campesinato italiano, resolver a questão da Itália meridional. Não é por acaso que esta lei é apresentada ao mesmo tempo que alguns projetos relativos à recuperação do Mezzogiorno.

Uma voz: fala da maçonaria.

Gramsci: Querem que eu fale da maçonaria. Mas no título da lei não há sequer uma menção à maçonaria, fala apenas de organizações em geral. Em Itália, o capitalismo pôde desenvolver-se na medida em que o Estado exerceu pressão sobre as populações camponesas, sobretudo no Sul. Hoje vocês sentem a urgência de tais problemas, por isso prometem mil milhões para a Sardenha, prometem obras públicas e centenas de milhões para todo o Mezzogiorno; mas para fazer um trabalho sério e concreto deveriam começar por restituir à Sardenha os 100-150 milhões de impostos que todos os anos extorquem à população sarda! Deviam restituir ao Mezzogiorno as centenas de milhões de impostos que todos os anos extorquem à população do Sul.

Mussolini: Vocês não fazem pagar impostos na Rússia!…

Uma voz: Na Rússia roubam, não pagam impostos!

Gramsci: Não é essa a questão, caro colega, que deveria pelo menos conhecer os relatórios parlamentares sobre estas questões que existem na biblioteca. Não se trata do mecanismo burguês normal dos impostos: trata-se do facto de todos os anos o Estado extorquir às regiões meridionais uma soma em impostos que não restitui de forma alguma, nem através de serviços de qualquer genéro…

Mussolini: Não é verdade.

Gramsci: …somas que o Estado extorque às populações camponesas meridionais para dar uma base ao capitalismo setentrional. (Interrupções, comentários)

Neste terreno das contradições do sistema capitalista italiano formar-se-á necessariamente, apesar da dificuldade de construir grandes organizações, a união de operários e camponeses contra o inimigo comum.

Vocês, fascistas, vocês, governo fascista, apesar de toda a demagogia dos vossos discursos, não superaram esta contradição que já era radical; pelo contrário, fizeram com que ela fosse mais fortemente sentida pelas classes populares e pelas massas.

Trabalharam nesta situação, para as necessidades desta situação. Juntaram uma nova poeira à já acumulada pelo desenvolvimento da sociedade capitalista e acreditam ter suprimido com uma lei os efeitos mais letais da vossa própria atividade. (Interrupções)

Esta é a questão mais importante na discussão desta lei! Podem “conquistar o Estado”, podem mudar as leis, podem procurar impedir que as organizações existam na forma em que têm existido até agora; não podem prevalecer contra as condições objetivas nas quais estão constrangidos a mover-se. Não farão mais do que forçar o proletariado a encontrar uma direção diferente daquela que, até agora, era a mais comum no campo da organização de massas. Queremos dizer isto ao proletariado e às massas camponesas italianas a partir desta tribuna: que as forças revolucionárias italianas não se deixarão quebrar, que o vosso sonho sinistro não terá êxito. (Interrupções)

É muito difícil aplicar a uma população de 40 milhões de habitantes os sistemas de governo de Tsankov. Na Bulgária há poucos milhões de habitantes e, de qualquer modo, apesar da ajuda externa, o governo não consegue derrotar a coligação do Partido Comunista e das forças revolucionárias camponesas, e em Itália há 40 milhões de habitantes.

Mussolini: O Partido Comunista tem menos membros do que o Partido Fascista Italiano!

Gramsci: Mas representa a classe operária.

Mussolini: Não a representa!

Farinacci: Trai-a, não a representa.

Gramsci: O vosso é um consentimento obtido com o bastão.

Farinacci: Está a falar de Miglioli!

Gramsci: Exatamente. O fenómeno Miglioli tem uma grande importância, exatamente no sentido daquilo que eu disse há pouco: que até as massas camponesas até as católicas estão a voltar-se para a luta revolucionária. Os jornais fascistas também não teriam protestado contra Miglioli se o fenómeno Miglioli não tivesse tido grande importância para mostrar uma nova orientação das forças revolucionárias em função das vossas pressões sobre as classes trabalhadoras.

Concluindo: a Maçonaria é a pequena bandeira que serve para passar as mercadorias anti-proletárias reacionárias! Não é a Maçonaria que vos interessa! A Maçonaria tornar-se-á uma ala do fascismo. A lei deve servir para os operários e camponeses, que a compreenderão muito bem a partir do uso que dela será feito. A estas massas queremos dizer que não conseguirão sufocar as formas organizativas da sua vida de classe, porque contra vocês está todo o desenvolvimento da sociedade italiana. (Interrupções)

Presidente: Mas não interrompam! Deixem-no falar. Você, Honorável Gramsci, não falou da lei!

Rossoni: A lei não é contra as organizações!

Gramsci: Honorável Rossoni, trata-se de uma secção da lei contra as organizações. Os operários e os camponeses devem saber que vocês não conseguirão impedir que o movimento revolucionário se reforce e se radicalize. (Interrupções, ruídos). Porque só isso representa hoje a situação do nosso país… (Interrupções)

Presidente: Honorável Gramsci, já repetiu esta ideia três ou quatro vezes. Tenha a bondade! Não somos jurados, que precisam de ouvir a mesma coisa muitas vezes!

Gramsci: Mas é preciso repetir, é preciso que o oiçam até à náusea. O movimento revolucionário derrotará o fascismo. (Comentários)

Carlos Carujo
Sobre o/a autor(a)

Carlos Carujo

Professor.