O espaço vital de Israel

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José Manuel Rosendo

29 de dezembro 2024 - 13:17
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Até onde Netanyahu quer ir? Até onde, a necessidade da guerra, enquanto instrumento de sobrevivência política, pode ser associada à necessidade da guerra para a expansão territorial de Israel? Publicado em Meu Mundo Minha Aldeia.

Será este o objectivo?
Será este o objectivo?

GAZA

Depois de arrasar a Faixa de Gaza, tornando-a terra queimada inabitável, as forças israelitas continuam os bombardeamentos contra o território palestiniano, triturando tudo o que ainda está de pé. Na Cisjordânia são constantes e diários os ataques israelitas a campos de refugiados e a cidades e aldeias palestinianas.

Apesar de Gaza estar arrasada e de Israel ter libertado apenas uma pequena parte dos reféns na posse dos movimentos palestinianos; apesar do Tribunal Penal Internacional ter emitido mandados de captura para o primeiro-ministro e o ex-ministro da defesa de Israel; apesar de haver cada vez mais vozes (Amnistia Internacional incluída) a dizerem que Israel está a cometer um Genocídio em Gaza; apesar de tudo isso, todos os dias os bombardeamentos israelitas matam dezenas de palestinianos. Todos os que levantam a voz e denunciam o massacre de Gaza são imediatamente apelidados de antissemitas ou aliados dos “terroristas”. Até António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, foi considerado por Israel “persona non grata”. E nem o Papa Francisco escapa ao crivo do governo israelita sobre declarações contra o massacre em Gaza. Numa carta publicada no jornal italiano Il Foglio, o ministro de Assuntos da Diáspora, Amichai Chikli, disse que as palavras do papa equivalem a uma “banalização” do termo genocídio – “uma banalização que chega perigosamente perto da negação do Holocausto”. Num livro publicado recentemente, o Papa Francisco disse que alguns especialistas internacionais afirmaram que “o que está acontecendo em Gaza tem características de genocídio” e que “devemos investigar cuidadosamente para avaliar se isso se encaixa na definição técnica (de genocídio) formulada por juristas e organizações internacionais”. O ministro israelita pede ao Papa “para esclarecer a sua posição sobre a nova acusação de genocídio contra o estado judeu”.

Israel, cada vez mais um Estado pária, é o único país do mundo onde o secretário-geral da ONU não pode entrar e para quem, até o Papa, deve explicar-se por alertar para os crimes cometidos em Gaza.

LÍBANO

No Líbano, perante a falta de armas e munições e o cansaço das tropas (tudo isto admitido por Benjamin Netanyahu), e a resistência do Hezbollah, Israel aceitou um cessar-fogo. Para trás fica um rasto de uma enorme de destruição no sul do Líbano, em Beirute e no Vale de Bekaa. França e Estados Unidos comprometeram-se a ser os “polícias” desse cessar-fogo, mas é Israel que decide se e quando há motivos para voltar a atacar o território libanês, o que já aconteceu dezenas de vezes depois de 27 de Novembro (data do cessar-fogo). O acordo de cessar-fogo prevê um prazo de 60 dias para a retirada total das forças israelitas do território libanês mas a ONU já manifestou “preocupação com a ‘destruição contínua’ pelas tropas israelitas em áreas residenciais, terras agrícolas e redes rodoviárias no sul do Líbano”, considerando que se trata de violações da resolução 1701 (adotada por unanimidade em 2006, estabeleceu um cessar-fogo permanente entre o Hezbollah e Israel, baseado na criação de uma ‘zona tampão’, monitorizada pela ONU).

As tropas israelitas continuam a movimentar-se livremente em território libanês, fazendo explodir habitações e destruindo o que muito bem entendem, incluindo em zonas onde não estavam presentes antes do acordo de cessar-fogo, sempre com o argumento de que existe perigo para a segurança de Israel.

SÍRIA

Na Síria, as forças israelitas ocuparam a zona tampão juntos dos Montes Golan (que já sofriam uma ocupação israelita ilegal) e entraram em territórios sírio para além da linha da zona tampão, manifestando intenção de aí ficar durante o inverno; em simultâneo, as forças israelitas efectuaram centenas de ataques que destruíram quase por completo o poder militar sírio.

Até onde e até quando?

Ninguém sabe onde irá parar a fúria do governo de Benjamin Netanyahu que não hesita em “varrer” do caminho até os mais fiéis aliados se estes cometerem o “crime” de admitir que é preciso acabar com a guerra na Faixa de Gaza de modo a resgatar os reféns enquanto estiverem vivos. Foi isso que custou a Yoav Gallant o lugar de Ministro da Defesa, embora seja bom não esquecer que foi Gallant quem chamou de “bestas humanas” os palestinianos de Gaza e anunciou um cerco total ao território logo a seguir a 7 de Outubro de 2023: “Não haverá eletricidade, comida ou combustível. Estamos a lutar contra bestas humanas e a agir de acordo com isso”.

A extrema-direita aplaudiu a demissão de Gallant. O ministro Itamar Ben Gvir disse que Netanyahu “fez bem”, porque com Yoav Gallant aos comandos a “vitória absoluta não poderia ser alcançada”. Gallant entrou muitas vezes em choque com os principais ministros de extrema-direita: Bezalel Smotrich e Ben Gvir, dois ministros que defendem que Israel deve voltar a ocupar a Faixa de Gaza. Gallant defendia (e concretizou) a chamada dos judeus ultra-ortodoxos ao serviço militar; defendeu também que ele e Netanyahu deviam ser investigados relativamente a eventuais responsabilidades no ataque do Hamas a 7 de Outubro e acusava Netanyahu de não saber como e quando acabar com a Guerra. Razões que conduziram ao seu afastamento, com Netanyahu a dizer que perdeu a confiança em Gallant e chamar para o governo o até agora ministro dos negócios estrangeiros, Israel Katz, homem da linha-dura que tem a alcunha de “buldózer”. Aliás, desde que chegou ao cargo não se cansou de fazer declarações que provam precisamente essa política de linha-dura.

Tudo pelo poder

Está em causa a sobrevivência de Netanyahu enquanto primeiro-ministro: precisa do apoio dos partidos de extrema-direita e também dos ultraortodoxos. E a sobrevivência política de Netanyahu passa, inevitavelmente, por continuar a guerra na Faixa de Gaza – seja qual for a sorte dos reféns israelitas nas mãos dos movimentos palestinianos – e, de preferência, estendê-la a outras frentes, como já acontece no Líbano e como acontece com os ataques frequentes a território sírio.

Algumas zonas do sul do Líbano ficaram muito parecidas com a Faixa de Gaza. É um território diferente que alberga um inimigo diferente – daí as dificuldades em ganhar terreno e o grande número de baixas do exército israelita – mas o tipo de destruição é semelhante. Para cada local bombardeado, Israel tem a justificação do costume: é um centro de comando terrorista, um armazém de armas ou mísseis, é um local de reunião de perigosos terroristas ou estava lá um qualquer responsável por um qualquer ataque contra Israel. Não importa que seja um edifício de uso civil, uma escola, uma mesquita ou um hospital: “cheira” a terrorista pode e deve ser bombardeado. É esta a argumentação e a lógica de guerra. Se houver um túnel nas redondezas está justificada a destruição de todas as habitações da zona. O próprio exército israelita divulgou as imagens desta destruição, que atingiu também o Vale de Bekaa (onde há património mundial em risco).

Ocupar, sempre

É bom lembrar que Israel ocupa já, ilegalmente, as quintas de Shebaa, um território que o Hezbollah reivindica como sendo libanês mas que a ONU considera que pertence à Síria, e ocupa também, ilegalmente, parte dos Montes Golã, território sírio. Territórios ocupados por Israel na sequência da “guerra dos seis dias”, em 1967. Para além disto, o Líbano reivindica território que neste momento está a sul da “linha azul” (a ONU explica: “a Linha Azul não é uma fronteira, mas uma ‘linha de retirada’ temporária estabelecida pela ONU em 2000”), considerando que a verdadeira fronteira (entre Líbano e Palestina) é a que foi estabelecida em 1923 quando França e Inglaterra eram as potências que dominavam a região. A definição concreta desta fronteira (terrestre) tem a importância acrescida de poder influenciar também o traçado da fronteira marítima.

Com duas excepções (retirada do Neguev em troca de um Tratado de Paz com o Egipto e retirada dos colonatos da Faixa de Gaza, em 2005), é evidente a ambição expansionista de Israel através da ocupação de territórios que não lhe pertencem em zonas de fronteira com outros países e ainda mais evidente com a ocupação de Jerusalém Oriental e da Cisjordânia onde os palestinianos estão cada vez mais fechados em guetos/ilhas.

Há uma pergunta a fazer: até onde Netanyahu quer ir? Até onde, a necessidade da guerra, enquanto instrumento de sobrevivência política, pode ser associada à necessidade da guerra para a expansão territorial de Israel? Qual é o espaço que Netanyahu considera “vital” para poder garantir a segurança de Israel e concretizar o “Grande Israel” (do Nilo ao Eufrates, ou qualquer outra das muitas versões que entretanto foram sendo conhecidas)? Noutro ponto do planeta não há falta de avisos em relação à ambição de Putin e às eventuais consequências de uma vitória russa na Ucrânia. A Rússia também está numa guerra por considerar que há um “espaço vital” que necessita de garantir. Já tivemos uma guerra mundial porque a Alemanha nazi também pretendia aceder a um “espaço vital” que lhe permitisse o desenvolvimento económico e servisse de base ao sonho imperial. Quanto a Netanyahu, parece que ninguém – no chamado mundo ocidental – está muito preocupado. Até quando?

António Guerreiro, no jornal Público, lembrava o que dizia o professor de ciência política da Universidade de Telavive, Amal Jamal: “uma das trágicas contradições de Israel é o facto de ter suscitado novamente o conceito de má memória que os judeus conheceram bem, enquanto vítimas: o conceito de Lebensraum, de espaço vital, agora encarnado nas políticas sionistas do território”.


Publicado a 27 de dezembro de 2024 em Meu Mundo Minha Aldeia.