A maior parte das pessoas que fazem a festa em cerca de 80 festivais de música por todo o mundo desconhecem a empresa por detrás da sua organização e o seu envolvimento na ocupação da Palestina. O nome KKR, pelo qual é conhecido o fundo de investimentos Kohlberg Kravis Roberts, estará certamente longe da mente de quem quer desfrutar as suas bandas favoritas. Mas conhecer a sua história traz uma nova perspetiva a esta experiência.
Alguns dos negócios do KKR
O KKR, dirigido pelos norte-americanos Henry Kravis e George Roberts, doadores abastados às campanhas dos Republicanos, é um investidor forte no fracking naquele país e na área da “cibersegurança” israelita, em empresas como a Optiv com ligações ao complexo industrial-militar do país.
É detentor, através de outra empresa que domina, a alemã Axel Springer, da maioria da Yad2 que se dedica à promoção imobiliária e tem no seu portefólio casas nos territórios palestinianos ocupados. De salientar que a Axel Springer é igualmente dona de grandes meios de comunicação social como o Die Welt, Business Insider ou o Politico.
A ligação da KKR aos negócios imobiliários israelitas passa ainda pela Guesty, uma plataforma de gestão de propriedades imobiliárias.
Através da Global Technical Realty, a KKR é também dona de centros de dados, um dos quais, o maior de Israel, também em território que era palestiniano e agora está ocupado.
Isto é apenas o que é do domínio público, pois uma parte dos seus investimentos surge disfarçado sob o nome de outros fundos de investimento.
A conexão aos festivais
Para além disso, em 2024 comprou por 1.400 milhões de euros a Superstruct Entertainment, uma empresa que organiza festivais de música em diferentes países. Só em Espanha são alguns dos maiores e mais conhecidos do país como o Sónar, Viña Rock, Resurrection Fest, Monegros Desert Festival, Arenal Sound, FIB de Benicàssim, Arenal Sound, O Son do Camiño, Brunch Electronik, Morriña Fest, Sonórica Festival, I Love Reggaeton, Madrid Salvaje, Caudal Fest, Love the Twenties, Love The 90s, Elrow Ibiza, Resurrection, Elrow Town, Monegros, Brava Madrid, Interestelar, Festival de Les Arts, Tsunami Xixón ou o Granada Sound.
A primeira notícia sobre isto em Espanha foi avançada pelo El Salto.
A resistência cultural ao KKR
Mas a entrada neste negócio no Reino Unido, através da compra da Boiler Room, comprada em janeiro de 2025 pela Superstruct, já tinha sido notada e gerado protestos. Depois de ser criticada, a Boiler Room admitiu em março que o seu novo proprietário “tem investimentos que categoricamente não se alinham com os nossos valores”, assinalando em comunicado que o seu “compromisso com a independência editorial e com a Palestina nunca fraquejou”, sublinhando que o pessoal da empresa não tem voz na questão da propriedade e que a sua programação continua a seguir os princípios do movimento BDS, Boicote, Desinvestimento e Sanções que os levam a não contratar artistas israelitas.
Na Finlândia, o principal festival de Helsínquia, o Flow Festival, é também organizado por uma companhia que é propriedade do KKR. Depois de conhecido o facto, organizou-se uma campanha chamada Flow Strike, apelando ao boicote do artistas ao evento com objetivo de acabar com as ligações deste ao Estado sionista.
Em Espanha, também a resistência à situação foi crescendo depois de conhecidas as ligações.
Uma das primeiras tomadas de posição tinha sido do BDS Galiza, que denunciou que o fundo era coorganizador de festivais de grande dimensão como o Resurrection Fest ou O Son do Camiño. A partir daí contactaram empresas, anunciantes, trabalhadores e artistas, apelando a uma tomada de posição sobre a questão.
O mesmo El Salto que tinha dado o pontapé de saída na denúncia pública do caso, deu conta numa notícia seguinte que não foram precisas “nem 24 horas” para que músicos de toda a Espanha começassem a anunciar que não participariam nos festivais organizados pela empresa detida pelo fundo imobiliário.
Esta primeira onda de rejeição incluía bandas e artistas como La Prados, Los de Marras, Manuka Honey, Juliana Huxtable, Sons of Aguirre, Animistic Beliefs, Jeisson Drenth, Dakidarría, Sínkope, Reincidentes e High Paw.
Os comunicados sucederam-se imediatamente a dizer que não colaborariam com “genocidas, cúmplices de uma limpeza étnica”, como declararam os Sons of Aguirre, ou que apesar de ser “praticamente impossível ter um consumo 100% ético” era necessário neste caso cessar a colaboração com estes festivais, como escreveu La Prados.
Ao mesmo tempo, nas redes sociais, dezenas de milhares de publicações exigiam posicionamento claro às organizações dos festivais.
No dia seguinte, este órgão de comunicação social dava conta que “70 artistas, bandas e djs internacionais exigiam ao festival de música eletrónica Sónar que se desvinculasse dos investimentos cúmplices do KKR”, adotasse “políticas éticas de programação e colaboração” e respeitasse as diretrizes do movimento BDS. Afirmavam que “a cumplicidade internacional facilita o genocídio israelita contra os palestinianos em Gaza e, para além disso, opomo-nos à participação de grandes corporações nos nossos festivais e recintos. Assinavam a posição inicial Ancient Pleasure, Amantra e DJ Sosa RD entre outros.
Ao mesmo tempo, dezenas de artistas e bandas como os Reincidentes, Fermín Muguruza e os Porretas informaram que cessaram de imediato todas as relações com o festival Viña Rock.
Cerca de uma semana depois do primeiro artigo, a notícia era que enquanto a lista de tomadas de posição de artistas continuava a crescer, passando a englobar bandas como La Élite, Gigatron, La Fúmiga e Tremenda Jauría que se negavam a participar nos festivais FIB em Benicásim, Resurrection Fest em Lugo, Arenal Sound (Burriana) e Tsunami Xixón. Djs como Animistic Beliefs e Jeisson Drenth anunciaram que não iriam ao Sónar e mais 15, entre os quais Midland e Roza Terenzi, afastaram-se do festival londrino Field Day. O histórico Brian Eno assumiu protagonismo neste caso, ao dar a cara por um conjunto de vários artistas que exigem a desvinculação dos investimentos do KKR, políticas de programação e colaboração éticas e respeito pelas diretrizes do BDS.
A notícia era então também que a primeira Câmara Municipal, a de Rivas-Vaciamadrid, tinha cessado o acordo com a Sharemusic!, uma das empresas dominadas pelo KKR, para os anos seguintes, admitindo que não o conseguiria fazer para os festivais deste verão dado o volume monetário que as indemnizações implicariam.
Se aí se conseguiu chegar a este ponto por ser uma autarquia de esquerda, nas mãos da Esquerda Unida, em Villarrobledo, Albacete, onde o Viña Rock decorre, tal não foi possível. Mas o Se Puede Villarrobledo, em minoria, não deixou de tomar posição exigindo uma “auditoria ética” às condições do festival, um dos mais afetados pela onda de desistências de bandas, e “o fim de qualquer colaboração municipal com empresas vinculadas à ocupação da Palestina”.
E festivais como Sónar, Viña Rock e Resurrection Fest viram-se obrigados a lançar comunicados a “desvincular-se” do fundo seu proprietário. O Sónar que, ao início tinha publicado uma nota a dizer apenas “condenar firmemente todo o tipo de violência”, face às críticas sobre a ambiguidade da mensagem acabou por ter de escrever: “Queremos expressar de forma explícita a nossa solidariedade com a população civil palestina presa na catástrofe humanitária que se vive em Gaza”.
Até a Superstruct emitiu mais tarde um comunicado em que justificava que todos os fundos ganhos nos festivais “permanecem integralmente dentro do nosso negócio e destinam-se ao desenvolvimento e realização contínuos dos nossos festivais em todo o mundo”, tentando assim fazer passar a mensagem que não haveria lucros a chegar à KKR.
E esta terça-feira, sempre o El Salto, dá conta de mais duas baixas de peso no cartaz do Sónar, a artista venezuelana Arca e o dj francês Rone. E noticia ainda que o coletivo de trabalhadores que escreveu uma Carta aberta pela Palestina a enviou aos participantes do Sónar +, reforçando que para além de 30 artistas terem já anunciado passar a boicotar o Sónar, também muitas instituições que iam participar na parte pedagógica e de divulgação do evento informaram que não participariam, entre as quais a Universitat Pompeu Fabra, Cracks in the Foundation: Curation in 2025, Listen, the Stars are Talking e Más Mujeres Creativas.
Nesta missiva respondem também à argumentação das empresas que dizem que os lucros dos festivais não irão parar ao KKR, contrapondo que estas “omitem que os lucros dos fundos de investimento dependem maioritariamente do valor em bolsa dos seus ativos. Se o Sónar é rentável, o seu valor aumenta e o KKR beneficia disto”. Acrescentando: “nesta lógica, artistas, organizações, instituições, universidades, entre outras entidades que participam no festival, convertem-se em ativos intangíveis do fundo de investimento KKR. Sem a soma dos seus participantes, o festival Sónar não é rentável”.