Havia alternativa? Revisitando o 11 de Setembro uma década depois

porNoam Chomsky

A resposta ao 11 de Setembro, um ataque maciço a uma população muçulmana, conduziu os Estados Unidos à 'armadilha diabólica' estendida por Bin Laden. O resultado foi que Washington continuou a ser o único aliado indispensável de Bin Laden, mesmo após a sua morte.

11 de setembro 2011 - 18:55
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Noam Chomsky: Washington realizou os mais fervorosos desejos de Bin Laden. Foto de Andrew Rusk

Estamos a aproximar-nos do 10º aniversário das horrendas atrocidades do 11 de Setembro de 2001, que, como se diz habitualmente, mudaram o mundo. No dia 1 de Maio deste ano, o presumível mentor do crime, Osama Bin Laden, foi assassinado no Paquistão por um comando militar de elite dos EUA, os SEALs da Marinha, depois de ter sido capturado, desarmado e indefeso, na Operação Geronimo.

Uma série de analistas observaram que Bin Laden, apesar de ter sido finalmente morto, obteve importantes sucessos na sua guerra contra os EUA. “Ele afirmou muitas vezes que a única maneira de expulsar os EUA do mundo muçulmano e derrotar os seus sátrapas era atrair os americanos para uma série de pequenas mas caras guerras, que acabariam por arruiná-los”, escreve Eric Margolis. “'Sangrar os EUA', nas suas próprias palavras. Os Estados Unidos, primeiro sob George W. Bush e depois sob Barack Obama, correram directamente para a armadilha de Bin Laden... Gastos militares grotescamente aumentados e dependência da dívida... pode ser o mais pernicioso legado do homem que pensou que poderia derrotar os Estados Unidos” – particularmente quando a dívida está a ser cinicamente explorada pela extrema-direita, com a conivência do establishment democrata, para minar o que resta de programas sociais, de educação pública, de sindicatos, e, em geral, das restantes barreiras à tirania empresarial.

Logo se tornou evidente que Washington estava inclinado a realizar os mais fervorosos desejos de Bin Laden. Como discuti no meu livro “9-11”, escrito pouco depois da ocorrência dos ataques, qualquer um que conhecesse a região poderia reconhecer “que um ataque maciço a uma população muçulmana era a resposta às orações de Bin Laden e dos seus seguidores, e conduziria os Estados Unidos e os seus aliados a uma 'armadilha diabólica', nas palavras do ministro dos Negócios Estrangeiros francês”.

O analista sénior da CIA responsável por perseguir Osama Bin Laden desde 1996, Michael Scheuer, escreveu pouco depois que “Bin Laden tem dito com precisão as razões que o levaram a desencadear a guerra contra nós. [Ele] pretende mudar de forma drástica as políticas dos EUA e do Ocidente em relação ao mundo islâmico”, e com um amplo sucesso: “As forças e as políticas dos EUA estão a provocar a radicalização do mundo islâmico, algo que Osama Bin Laden vem tentando fazer com sucesso substancial, mas incompleto, desde o início dos anos 90. O resultado, parece-me justo concluir, é que os Estados Unidos da América continuam a ser o único aliado indispensável de Bin Laden.” E possivelmente continuam a sê-lo, mesmo após a sua morte.

O primeiro 11/9

Havia uma alternativa? Há todas as probabilidades de que o movimento jihadista, muito do qual altamente crítico a Bin Laden, pudesse ter sido dividido e minado após o 11/9. O “crime contra a humanidade”, como era correctamente chamado, poderia ter sido abordado como um crime, com uma operação internacional para deter os presumíveis suspeitos. Na época esta ideia foi reconhecida, mas a sua execução sequer foi considerada.

Em “9-11”, citei a conclusão de Robert Fisk de que “o crime horrendo” de 11/9 foi cometido “com maldade e crueldade impressionante,” um juízo exacto. É útil ter em mente que os crimes poderiam ter sido ainda piores. Suponham, por exemplo, que o ataque tivesse ido tão longe ao ponto de bombardear a Casa Branca, matando o presidente, de impor uma ditadura militar brutal que matasse milhares e torturasse dezenas de milhares, instalando ao mesmo tempo um centro de terror internacional que ajudasse a impor estados similares de tortura-e-terror noutros países, e executando uma campanha internacional de assassinato; e como um incentivo suplementar, tivesse trazido uma equipa de economistas – chamemos-lhes de “os Kandahar boys” – que rapidamente conduzissem a economia a uma das piores depressões da sua história. Claramente, teria sido muito pior do que o 11/9.

Infelizmente, nada disto é especulação. Aconteceu. A única inexactidão neste breve relato é que os números devem ser multiplicados por 25 para produzir equivalentes per capita, a medida apropriada. Refiro-me, naturalmente, àquilo que na América Latina é frequentemente chamado de “o primeiro 11/9”: o 11 de Setembro de 1973, quando os Estados Unidos culminaram com sucesso os seus esforços para derrubar o governo democrático de Salvador Allende, no Chile, com um golpe militar que levou ao poder o regime brutal do general Pinochet. O objectivo, nas palavras da administração Nixon, era matar o “vírus” que poderia estimular todos esses “estrangeiros [que] andam a querer tramar-nos” e que queriam assumir o controlo dos seus próprios recursos e aplicar uma política intolerável de desenvolvimento independente. A apoiar esta política estava a conclusão do Conselho de Segurança Nacional que, se os EUA não conseguiam controlar a América Latina, não se podia esperar que conseguissem realizar a sua Ordem “em qualquer outro lugar no mundo.”

O primeiro 11/9, ao contrário do segundo, não mudou o mundo. Não era “nada de grandes consequências”, como garantiu Henry Kissinger ao seu chefe poucos dias depois.

Estes eventos de poucas consequências não se limitaram ao golpe militar que destruiu a democracia chilena e pôs em movimento a história de horror que se seguiu. O primeiro 11/9 foi apenas um acto de um drama que começou em 1962, quando John F. Kennedy alterou a missão dos militares latino-americanos de “defesa hemisférica” – um resquício anacrónico da Segunda Guerra Mundial – para a “segurança interna”, um conceito com uma interpretação arrepiante nos círculos latino-americanos dominados pelos EUA.

Na “História da Guerra Fria”, recentemente publicada pela Universidade de Cambridge, o académico latino-americano John Coatsworth escreve que daquele tempo até “ao colapso soviético em 1990, o número de presos políticos, de vítimas de tortura, e de execuções de dissidentes políticos não violentos na América Latina excedeu amplamente os da União Soviética e seus satélites europeus do Leste,” incluindo também muitos mártires religiosos e massacres em massa, sempre apoiados ou iniciado em Washington. O último grande acto violento foi o assassinato brutal de seis importantes intelectuais latino-americanos, sacerdotes jesuítas, poucos dias depois da queda do Muro de Berlim. Os criminosos foram um batalhão de elite salvadorenho, que já tinha deixado um chocante rasto de sangue, recém saído de um treinamento na Escola de Guerra Especial JFK, que actua sob as ordens directas do Alto Comando do estado cliente dos Estados Unidos.

Evidentemente, as consequências desta praga hemisférica ainda ecoam.

Dos raptos à tortura e ao assassinato

Tudo isto, e muitas coisas semelhantes, são desvalorizadas como sendo de pouca importância, e esquecidas. Aqueles cuja missão é governar o mundo desfrutam de uma imagem mais reconfortante, muito bem articulada na actual edição do prestigiado (e valioso) jornal do Royal Institute of International Affairs, em Londres. O artigo principal discute “a ordem internacional visionária” da “segunda metade do século XX” marcada pela “universalização de uma visão americana da prosperidade comercial”. Eis uma visão que não chega a exprimir a percepção daqueles que estão do lado errado das armas.

O mesmo vale para o assassinato de Osama Bin Laden, que põe fim, pelo menos, a uma fase da “guerra contra o terror” re-declarada pelo presidente George W. Bush no segundo 11/9. Façamos algumas reflexões sobre esse evento e o seu significado.

Em 1 maio de 2011, Osama Bin Laden foi morto na sua praticamente desprotegida residência por uma incursão de 79 SEALs da Marinha, que entraram no Paquistão de helicóptero. Depois de muitas histórias sensacionalistas fornecidas pelo governo e retiradas, os relatórios oficiais tornaram cada vez mais claro que a operação foi um assassinato planeado, violando multiplamente as normas elementares do direito internacional, começando com a invasão em si.

Não parece ter havido qualquer tentativa de deter a vítima desarmada, como presumivelmente poderia ter sido feito por 79 comandos que não enfrentaram oposição – excepto, relatam, da sua esposa, também desarmada, contra a qual dispararam em legítima defesa, quando ela “arremeteu” sobre eles, de acordo com a Casa Branca.

A reconstrução plausível dos acontecimentos foi feita pelo veterano correspondente no Médio Oriente Yochi Dreazen e colegas na revista Atlantic. Dreazen, ex-correspondente militar do Wall Street Journal, é correspondente sénior do Grupo National Journal, cobrindo assuntos militares e de segurança nacional. De acordo com a sua investigação, o planeamento da Casa Branca não parece ter considerado a opção de capturar Bin Laden vivo: “O governo deixou claro ao clandestino Comando Conjunto de Operações Especiais que queria Bin Laden morto, de acordo com uma autoridade sénior dos EUA que teve conhecimento das discussões. Um oficial de alta patente militar que foi informado do assalto disse que os SEALs sabiam que a sua missão não era levá-lo vivo.”

Os autores acrescentam: “Para muitos, no Pentágono e na CIA, que tinham passado quase uma década a caçar Bin Laden, matar o militante foi um acto necessário e justificado de vingança”. Além disso, “a captura de Bin Laden vivo teria também posto a administração diante de uma série de incómodos desafios jurídicos e políticos”. Melhor, então, assassiná-lo, deitar o corpo ao mar sem a autópsia considerada essencial depois de uma morte – um acto que previsivelmente provocou raiva e cepticismo em grande parte do mundo muçulmano.

Como observa a investigação da Atlantic: “A decisão de matar Bin Laden sem rodeios foi a ilustração mais clara até agora de um aspecto pouco notado da política de contra-terrorismo da administração Obama. O governo Bush capturou milhares de militantes suspeitos e enviou-os para campos de detenção no Afeganistão, no Iraque e na Baía de Guantánamo. A administração Obama, em contraste, tem-se concentrado em eliminar terroristas individuais em vez de tentar capurá-los vivos.” Trata-se de uma diferença significativa entre Bush e Obama. Os autores citam o ex-chanceler da Alemanha Ocidental Helmut Schmidt, que “disse à TV alemã que a invasão dos EUA foi 'muito claramente uma violação do direito internacional' e que Bin Laden deveria ter sido detido e levado a julgamento”, contrapondo Schmidt ao Procurador Geral dos EUA, Eric Holder, que “defendeu a decisão de matar Bin Laden, embora este não representasse uma ameaça imediata para os SEALs, dizendo a um painel da Câmara ... que o assalto tinha sido 'legal, legítimo e adequado em todos os sentidos'”.

A eliminação do corpo sem autópsia também foi criticada por aliados. O eminente advogado britânico Geoffrey Robertson, que apoiou a intervenção e se opôs à execução em grande parte por razões pragmáticas, considerou no entanto a afirmação de Obama de que “fora feita justiça” como um “absurdo”, o que deveria ser óbvio para um ex-professor de direito constitucional. A lei do Paquistão “exige um inquérito sobre a morte violenta e a legislação internacional de direitos humanos insiste que o 'direito à vida' obriga a um inquérito sempre que ocorre uma morte violenta por acção de um governo ou da polícia. Os EUA têm, portanto, o dever de realizar um inquérito que satisfaça o mundo quanto às verdadeiras circunstâncias desta morte.”

Robertson, a propósito, recorda-nos que “nem sempre foi assim. Quando chegou a hora de decidir o destino de homens muito mais mergulhados na maldade que Osama Bin Laden – a liderança nazi – o governo britânico queria que eles fossem enforcados seis horas após a captura. O presidente Truman hesitou, citando a conclusão de Robert Jackson, do Supremo Tribunal, que a execução sumária “não se sentaria facilmente na consciência americana nem seria lembrada pelos nossos filhos com orgulho... o único caminho é determinar a inocência ou culpa do acusado depois de uma audiência tão desapaixonada quanto os tempos permitam e após um registo que vai deixar claros as nossas razões e motivos”.

Eric Margolis comenta que “Washington nunca publicou provas da sua afirmação de que Osama bin Laden esteve por trás dos ataques do 11 de Setembro”, presumivelmente uma razão pela qual “as sondagens mostram que pelo menos um terço dos americanos que responderam acredita que o governo de Estados Unidos e/ou Israel estiveram por trás do 11 de Setembro”, enquanto no mundo muçulmano o cepticismo é muito mais alto. “Um julgamento aberto nos Estados Unidos ou em Haia teria exposto essas afirmações à luz do dia”, continua, razão prática pela qual Washington deveria ter seguido a lei.

Em sociedades que professam algum respeito pela lei, os suspeitos são detidos e levados a um julgamento justo. Sublinho "suspeitos". Em Junho de 2002, o chefe do FBI Robert Mueller, no que o Washington Post descreveu como “entre os seus comentários públicos mais detalhados sobre a origem dos ataques”, pôde dizer apenas que “os investigadores crêem na ideia de que os ataques do 11 de Setembro ao World Trade Center e ao Pentágono vieram de líderes da Al Qaeda no Afeganistão, a maquinação efectiva foi feita na Alemanha, e o financiamento veio através dos Emirados Árabes Unidos a partir de fontes no Afeganistão.”

O que o FBI acreditou e pensou em Junho de 2002 não o sabia oito meses antes, quando Washington repeliu ofertas provisórias dos Taliban (quão sérias, não sabemos) para permitir um novo julgamento de Bin Laden se lhes fossem apresentadas provas. Assim, não é verdade, como o presidente Obama afirmou nas suas declarações da Casa Branca depois da morte de Bin Laden, que “rapidamente soubemos que os ataques do 11 de Setembro foram executados pela Al-Qaeda.”

Nunca houve alguma razão para duvidar do que o FBI acreditou em meados de 2002, mas isto deixa-nos longe da prova da culpa requerida em sociedades civilizadas – e quaisquer que as provas fossem, não justificam o assassinato de um suspeito que, parece, teria sido facilmente detido e levado a julgamento. O mesmo é mais ou menos verdade quanto às provas fornecidas desde então. Assim, a Comissão do 11 de Setembro forneceu provas circunstanciais extensas do papel de Bin Laden no 11 de Setembro, baseando-se principalmente no que lhe tinha sido dito sobre confissões de presos de Guantánamo. É duvidoso que muito disso se sustivesse num julgamento independente, tendo em conta as maneiras como as confissões foram extraídas. Mas, em qualquer caso, as conclusões de uma investigação autorizada pelo Congresso, por muito convincentes que se possam achar, claramente ficariam aquém de uma sentença por um tribunal credível, que é o que passa a categoria do acusado de suspeito para condenado.

Fala-se muito da "confissão" de Bin Laden, mas aquilo foi uma fanfarronice, não uma confissão, com tanta credibilidade quanto a minha "confissão" de que ganhei a maratona de Boston. A fanfarronice diz-nos muito do seu carácter, mas nada da sua responsabilidade pelo que ele considerou como um grande feito, do qual quis ficar com o crédito.

De novo, tudo isso é, de forma transparente, bastante independente do nosso juízo sobre a sua responsabilidade, que pareceu clara imediatamente, mesmo antes do inquérito do FBI, e que ainda parece.

Crimes de Agressão

Vale a pena acrescentar que a responsabilidade de Bin Laden foi reconhecida na maior parte do mundo muçulmano e condenada. Um exemplo significativo é o do eminente clérigo libanês, xeique Fadlallah, muito respeitado em geral pelo Hezbollah e por grupos xiitas, também fora do Líbano. Ele tinha alguma experiência com assassinatos. Tinha sido visado para assassínio: por um camião-bomba fora duma mesquita, numa operação organizada pela CIA em 1985. Escapou, mas 80 outros foram mortos, na maior parte mulheres e meninas ao saírem da mesquita – um daqueles crimes inumeráveis que não entram para os anais do terror por causa da falácia “da agência errada.” O xeique Fadlallah condenou marcadamente os ataques do 11 de Setembro.

Um dos especialistas principais do movimento jihadista, Fawaz Gerges, sugere que o movimento poderia ter-se dividido, tivessem os Estados Unidos explorado a oportunidade, em vez de mobilizar o movimento, em particular com o ataque ao Iraque, um grande benefício para Bin Laden, que levou a um aumento acentuado do terror, como as agências de espionagem tinham antecipado. Nas audições Chilcot, ao investigar o contexto da invasão do Iraque, por exemplo, o antigo chefe da agência de informações internas britânica MI5 declarou que tanto a agência britânica como a dos Estados Unidos estavam conscientes de que Saddam não representava qualquer ameaça séria, que a invasão provavelmente aumentaria o terror e que as invasões do Iraque e do Afeganistão tiveram partes de uma geração radicalizada de muçulmanos que viram as acções militares como “um ataque ao Islão”. Como acontece muitas vezes, a segurança não foi uma prioridade alta para a acção do estado.

Poderia ser instrutivo perguntarmo-nos como estaríamos a reagir se comandos iraquianos tivessem aterrado no complexo militar de George W. Bush, o assassinassem e lançassem o corpo no Atlântico (depois dos rituais fúnebres devidos, naturalmente). Sem sombra de controvérsia, ele não era um "suspeito" mas sim o "decisor" que deu as ordens para invadir o Iraque – isto é, cometer “o crime internacional supremo que só se diferencia de outros crimes de guerra por conter dentro de si a maldade acumulada da totalidade” pelo qual os criminosos nazis foram enforcados: as centenas de milhares de mortes, os milhões de refugiados, a destruição da maior parte do país e do seu património nacional e o conflito sectário assassino que agora se estendeu ao resto da região. Igualmente de forma incontroversa, esses crimes excederam vastamente tudo o atribuído a Bin Laden.

Dizer que tudo isso é incontroverso, conforme é, não quer dizer que não seja negado. A existência de aplanadores da Terra não muda o facto de que, de forma incontroversa, a terra não é plana. De forma semelhante, é incontroverso que Estaline e Hitler foram responsáveis por crimes horrendos, embora os seus partidários o neguem. Tudo isto deveria, de novo, ser demasiado óbvio para ser comentado, e sê-lo-ia, excepto numa atmosfera de histeria tão extrema que bloqueasse o pensamento racional.

De forma semelhante, é incontroverso que Bush e seus parceiros cometeram mesmo o “crime internacional supremo” – o crime da agressão. Aquele crime foi definido de forma suficientemente clara pelo magistrado Robert Jackson, o Chefe do Conselho dos Estados Unidos em Nuremberga. "Um agressor", propôs Jackson ao Tribunal na sua declaração de abertura, é um estado que é o primeiro a cometer tais ações como a “invasão pelas suas forças armadas, com ou sem declaração da guerra, do território de outro estado”. Ninguém, nem mesmo o apoiante mais extremo da agressão, nega que Bush e parceiros fizeram precisamente isso.

Também faríamos bem em lembrar as palavras eloquentes de Jackson em Nuremberga sobre o princípio da universalidade: “Se certos atos na violação de tratados são crimes, são crimes sejam os Estados Unidos ou seja a Alemanha fazê-los e não estamos preparados para estabelecer uma regra da conduta criminal contra outros que não estivéssemos dispostos a ter invocado contra nós”.

É também claro que intenções anunciadas são irrelevantes, mesmo se nelas se acreditar verdadeiramente. Registos internos revelam que os fascistas japoneses aparentemente acreditaram que, ao assolar a China, se esforçavam por a converter “num paraíso terrestre”. E embora possa ser difícil imaginar, é concebível que Bush e companhia acreditassem que protegiam o mundo da destruição pelas armas nucleares de Saddam. Tudo irrelevante, embora partidários ardentes em todos os lados possam tentar convencer-se de outra coisa.

Deixam-nos duas escolhas: ou Bush e seus parceiros são culpados do “crime internacional supremo” incluindo de todos os males que se seguem, ou então declaramos que os processos de Nuremberga foram uma farsa e que os aliados eram culpados de assassinato judicial.

A Mentalidade Imperial e o 11 de Setembro

Alguns dias antes do assassinato de Bin Laden, Orlando Bosch morreu pacificamente na Flórida, onde viveu juntamente com o seu cúmplice Luis Posada Carriles e muitos outros parceiros do terrorismo internacional. Depois de ter sido acusado de dúzias de crimes terroristas pelo FBI, Bosch recebeu um perdão presidencial de Bush I, passando por cima das objecções do Departamento de Justiça que considerou a conclusão “inevitável de que seria prejudicial para o interesse público dos Estados Unidos fornecer um porto seguro a Bosch”. A coincidência dessas mortes imediatamente traz a doutrina de Bush II à lembrança – “já … uma regra de facto das relações internacionais”, segundo o notável especialista de relações internacional de Harvard Graham Allison – que renega “a soberania de estados que fornecem santuário a terroristas”.

Allison refere-se à declaração oficial de Bush II, dirigida aos Taliban, de que “aqueles que abrigam terroristas são tão culpados como os próprios terroristas”. Tais estados, portanto, perderam a sua soberania e são objectivos prontos para bombardeamento e terror – por exemplo, o estado que abrigou Bosch e o seu parceiro. Quando Bush emitiu esta nova “ regra de facto das relações internacionais,” ninguém pareceu notar que ele apelava à invasão e destruição dos Estados Unidos e ao assassínio dos seus presidentes criminosos.

Nada disto é problemático, claro, se rejeitarmos o princípio da universalidade do magistrado Jackson, e adoptarmos antes o princípio de que os Estados Unidos são auto-imunes contra o direito internacional e as convenções – como, de facto, o governo tornou frequentemente muito claro.

Vale a pena também pensar no nome dado à operação de Bin Laden: Gerónimo. A mentalidade imperial é tão profunda que poucos parecem capazes de perceber que a Casa Branca está a glorificar Bin Laden chamando-lhe “Gerónimo” - o chefe índio apache que conduziu a resistência corajosa aos invasores das terras Apache.

A escolha descuidada do nome lembra a tranquilidade com que damos nomes às nossas armas de assassinato a partir das vítimas dos nossos crimes: Apache, Blackhawk [1]… Poderíamos reagir diferentemente se a Luftwaffe tivesse chamado aos seus aviões de combate "Judeu" e "Cigano".

Os exemplos mencionados caem dentro da categoria “excepcionalismo americano,” não fosse o facto de uma supressão fácil dos crimes próprios ser virtualmente ubíqua entre estados poderosos, pelo menos naqueles que não são derrotados e obrigados a reconhecer a realidade.

Talvez o assassinato tenha sido percebido pela administração como “um acto de vingança,” como Robertson conclui. E talvez a rejeição da opção legal de um julgamento reflicta uma diferença entre a cultura moral de 1945 e a de hoje, como ele sugere. Qualquer que fosse o motivo, dificilmente podia ter sido apenas a segurança. Como no caso de “crime internacional supremo” no Iraque, o assassinato de Bin Laden é outra ilustração do facto importante de que a segurança é muitas vezes não uma alta prioridade da acção do estado, ao contrário da doutrina que recebemos.

Noam Chomsky é Professor emérito do Instituto no Departamento de Linguística e Filosofia do MIT. É autor de numerosas obras políticas de topo de vendas, incluindo “9-11: Was There an Alternative?” (Seven Stories Press), uma versão actualizada do seu relato clássico, que acaba de ser publicada esta semana juntamente com um novo ensaio destacado – a partir do qual este post foi adaptado – levando em conta os 10 anos desde os ataques do 11 de Setembro.

Copyright 2011, Noam Chomsky

Tradução de Luis Leiria e Paula Sequeiros para o Esquerda.net

Retirado do Tom Dispatch

[1] NT: Blackhawk, líder guerreiro dos nativos Norte-Americanos Sauk que demonstrou ser um poderoso opositor dos invasores colonizadores ingleses

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