Admirável mundo artificial

porMaria J. Paixão

08 de março 2025 - 21:43
PARTILHAR

Há uma ironia preocupante na forma como o aprofundamento da guerra fria tecnológica culminou numa inversão dos dados do problema: a IA, que começou por suscitar receios generalizados, é hoje propagandeada como bala de prata para todos os problemas da Humanidade.

Realizou-se, em Paris, a Cimeira de Ação sobre Inteligência Artificial, onde se reuniram representantes de mais de cem Estados para discutir o desenvolvimento da IA. A Cimeira acontece num momento em que a guerra fria tecnológica entre os EUA e a China conhece nova reviravolta, com a apresentação do modelo chinês DeepSeek, desafiando as preconceções prevalecentes no seio da indústria sobre o poder computacional e o capital necessários para desenvolver produtos de ponta.

A Cimeira de Paris esteve envolta num entusiasmo com tons de desafio que, evidenciando as tensões geopolíticas subjacentes, afastou do centro do debate algumas das questões mais prementes colocadas pelo desenvolvimento deste tipo de tecnologias. A par da postura arrogante da nova Administração estadunidense (que, a esta altura, já não surpreende ninguém), destacaram-se as intervenções dos representantes europeus, em particular Macron e von der Leyen. A Presidente da Comissão recusou a ideia de que a UE está fora da corrida, prometendo assumir a dianteira mediante adoção de uma "abordagem europeia". Esta abordagem implica, segundo von der Leyen, "adotar um modo de vida em que a IA está em todo o lado".

Desconsiderando a triste tentativa das instituições europeias de se manterem relevantes, as palavras de von der Leyen ecoam o sentimento generalizado entre as altas instâncias políticas e a indústria: a única trajetória concebível para o futuro da IA é a expansão. O potencial da IA, empolado pelas demonstrações de força dos líderes mundiais e pelo auto-embevecimento dos CEO’s das grandes tecnológicas, começa a obscurecer os seus problemas e desafios. A IA deixou de ser debatível, passando a ser apenas disputável. A discussão em torno dos riscos associados e dos objetivos da sua implementação foi sufocada pela disputa pela liderança da indústria. Embora a analogia não seja integralmente correta, o cenário que se desenrola não pode deixar de recordar a corrida ao armamento nuclear nos anos sessenta.

Há uma ironia preocupante na forma como o aprofundamento da guerra fria tecnológica culminou numa inversão dos dados do problema: a IA, que começou por suscitar receios generalizados, é hoje propagandeada como bala de prata para todos os problemas da Humanidade. A discussão em torno do problema do desemprego massivo deu lugar ao enaltecimento do potencial da IA para aumentar a produtividade, acelerar processos e reduzir custos. O debate sobre o perigo deste tipo de tecnologias para a democracia foi substituído pelo defesa acrítica da desregulação do setor em nome da inovação. Os desafios associados à desumanização das relações sociais, tantas vezes retratados nas melhores obras de ficção científica, são agora ignorados nos discursos de líderes políticos como von der Leyen, que almejam um mundo onde a IA "está em todo o lado".

Esta ingenuidade gananciosa tem contaminado também a discussão em torno dos impactos ecológicos e climáticos da IA. Dados os termos em que tem sido apresentada, na nossa imaginação coletiva a IA surge como algo etéreo, leve e imaterial. Nas suas mais esforçadas versões, a narrativa dominante chega a elevar este tipo de tecnologia a bote salva-vidas da Humanidade: num cenário em que o colapso climático parece iminente, a IA salvar-nos-á. Ora, este discurso não podia estar mais longe da realidade.

O treino e utilização de modelos de IA generativa, de que é exemplo paradigmático o ChatGPT, utilizam quantidades avassaladoras de energia e requerem o uso de igualmente colossais quantidades de água para arrefecer o hardware que suporta o seu funcionamento. Dadas as limitações dos computadores convencionais, a utilização desta tecnologia funciona com base num sistema de "cloud computing": o processamento da informação ocorre, não no computador do utilizador, mas na "nuvem", a qual depende de uma poderosa rede de datacenters. Por conseguinte, para garantir o fornecimento deste tipo de serviços de forma massificada, as grandes tecnológicas criaram e continuam a expandir massivos datacenters, que consomem quantidades astronómicas de energia e água. Ao centralizar a operação destas tecnologias, o modelo implementado externaliza os custos da sua utilização: para o utilizador que acede, por exemplo, ao ChatGPT, os gastos em energia e água são invisíveis, não sendo por si suportados. Cria-se, portanto, uma dissociação entre o utilizador e os reais impactos de funcionamento dos sistemas. Seria como se a utilização de aquecedores domésticos não gerasse um incremento na conta da eletricidade – tornar-se-ia muito mais abstrata a ideia de que esses equipamentos consomem energia e, por conseguinte, dependem da extração de combustíveis fósseis. Como facilmente se compreende, este é um quadro fértil para as narrativas simplistas e enaltecedoras da IA, até porque as grandes tecnológicas conseguem facilmente fazer face aos encargos económicos, podendo ignorar os impactos ecológico-climáticos associados.

A este respeito, convém ainda notar que, dada a dependência de elevadas quantidades de energia e água, a implementação de datacenters gera uma sobrecarga significativa para as infraestruturas energéticas locais e compromete a disponibilidade de água. Por conseguinte, os territórios onde são implementados ficam vulneráveis a impactos socioeconómicos não despiciendos.

Nada do que ficou exposto pretende demonizar definitivamente a IA. Não obstante, tempos hiper-complexos como o nosso exigem debates coletivos informados e sérios. Aquilo a que se tem vindo a assistir é, precisamente, o oposto: o debate em torno da IA, sobretudo ao nível das instâncias governamentais, tem-se tornado cada vez mais superficial. As grandes potências globais parecem mais focadas na corrida estéril atrás da próxima inovação do que na imprescindível cooperação internacional em torno de uma questão que é, inerentemente, do interesse da Humanidade.

Artigo publicado em Sábado a 16 de fevereiro de 2025

Maria J. Paixão
Sobre o/a autor(a)

Maria J. Paixão

Assistente Convidada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Investigadora na área do Direito do Clima. Ativista pela Justiça Climática junto de vários movimentos sociais
Termos relacionados: