Alinho momentos e dados marcantes, com valores aproximados, para um sobrevoo da infraestruturação das bibliotecas em Portugal. Nos anos 1980 iniciam-se trabalhos para uma leitura pública, a par de orientações internacionais e do estudo de casos europeus.

1986 – propostas de coordenação da intervenção do Estado (governo e autarquias); intervêm profissionais, no âmbito da Secretaria de Estado da Cultura. A Base Bibliográfica nacional concretiza-se. A PORBASE tem hoje 2 milhões de registos.
1987 – Rede Nacional de Bibliotecas Públicas (RNBP). Hoje com 481 bibliotecas.
2017 – redes intermunicipais ligam parte das BP.
2024 – RNBP na quase totalidade dos municípios.
Investimento (municípios, governo e fundos comunitários): €1 milhão (documentação), €700 (meios informáticos), €1,3 milhões (mobiliário/equipamentos). Emprego: 2941, do qual 571 bibliotecárias e 876 técnicas de biblioteca. Leitores inscritos: 2,1 milhões (69% adultos). Empréstimos: 2,1 milhões de livros, 33,4 mil jornais e revistas, 60,5 mil DVD e 15,3 CD.
Da biblioteca vislumbra-se a cidade
A infraestruturação das atuais BP, as práticas de trabalho partilhado construíram-se ao longo de anos. Diversas BP propiciam hoje recreação, informação, conhecimento, convivialidade, educação, por vezes o único acesso local à cultura. As e os utentes contam com gratuitidade, locais com conforto e privacidade, diferentes meios – impressos, audiovisuais, digitais. Boa parte das BP promove a leitura – apresentação de livros e autores, por exemplo – e a extensão cultural – criação literária e artística para crianças e adultos.
A dimensão da RNBP e das redes territoriais só ganham corpo com políticas de sustentação dos serviços de leitura públicos. Requerem-se agora políticas que garantam a qualificação profissional do trabalho, que financiem o desenvolvimento tecnológico e a inclusão social na leitura pública. Uma biblioteca enraizada localmente, que trabalhe com associações e agentes culturais, atenderá a objetivos por concretizar. Ao ler requer-se tranquilidade para a leitura individual, mas não se dispensam a descoberta intelectual, as leituras desafiantes. Requer-se a serenidade na ligação social ao que é vizinho, e para além dos círculos do trabalho, da escola, do local. Criar lugar, para quem não o teve antes, é central: a pobreza cunha uma dupla desafeição, pela iliteracia, pela não familiaridade com os espaços. Em bibliodiversidade acolhe-se a diversidade social e oferece-se leitura em meios variados e apelativos a vários perfis. Cidades para viver bem enlaçam-se, na dimensão política, com uma vivência democrática.
Relato um caso de aposta social e política. Usar uma cozinha na BP de Santa Coloma de Gramenet, pequena cidade catalã com muitos imigrantes e muito alta densidade populacional, encontrou grande popularidade em 2017. À volta dum prato tradicional de diferentes comunidades de origem, com diversas línguas e nacionalidades, na demonstração culinária não verbal, cozinhar e comer junto fazia-se na troca de aprendizagens.
Recriando experiências análogas, a biblioteca, em articulação com associações locais e a universidade, conseguiu momentos de quebra da desconfiança e estranheza entre desconhecidos na cidade que se confrontara-se, pouco antes, com atos racistas. Sem ilusões – a ação da biblioteca não poria fim ao racismo –, o acompanhamento do projeto relatou ganhos numa copresença respeitosa e mais frequência de filhos de imigrantes. E estas crianças ao entrarem acompanhadas por familiar, ao conhecerem o estudo acompanhado nas línguas mais frequentes, levaram as famílias a disseminar a notícia de um espaço acolhedor. Ao anterior barulho contra o aumento das entradas na mesquita, seguira-se manifestação pela liberdade religiosa com eco num jornal local. Os despejos de imigrantes vinham sendo impedidos por outros, anteriores residentes na cidade e organizados na Plataforma Antidespejos. Pela biblioteca passavam notícias, criavam-se laços na urbe. A coleção desenvolvia-se para estas novas leituras, a declaração era de receber além das pessoas “habituais”.
Ligação internacional em dinâmica histórica
A partir do registo histórico, desde o século 19, é conhecida a troca de visões sobre o que é uma biblioteca eficiente, popular, entre a Europa e o norte do continente Americano, a qual se estendeu a profissionais em Portugal.
A UNESCO e a IFLA (Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias), referência na área, vêm publicando linhas de orientação para agentes políticos e profissionais, para o acesso à cultura e à informação. As suas Guidelines informaram a ideação da RNBP. O recente Manifesto IFLA/UNESCO, de 1994, enfoca as demandas por «igualdade de acesso para todos, independentemente da idade, raça, sexo, religião, nacionalidade, idioma ou estatuto social».
De uma lógica argumentativa sobre acesso a direitos culturais e igualdade é necessário avançar para uma política que transforme a realidade na leitura pública. Não são benévolas, em si, as bibliotecas. Ligam-se aos sistemas de informação, da educação, da economia do livro e do digital, a outros setores da cultura. Relevando o realizado, atendendo ao “por fazer”, num panorama político regressivo, o momento atual requer ação política por medidas que efetivem esses direitos. Requer-se movimentação cidadã que alerte, defenda e propulsione.
Liberdade de expressão e de acesso à expressão em tempos de crise
Bandos de extrema-direita, em anos recentes, fizeram investidas contra exposições, feiras do livro, bibliotecas, apresentações de livros em livrarias, contação de histórias, atacando autoras de livros para a infância no nosso país. Pretextavam a defesa de crianças e jovens contra a corrupção moral pela “ideologia igualitária”. Gritavam em defesa da “família tradicional”, da ordem social, contra o “estrangeirismo” de livros e ideias na cultura. Atacaram e perseguiram ciganos, islamitas e imigrantes, nas redes sociais exponenciaram as suas narrativas populistas de ódio. Extremismo que ascendeu na esteira do banimento de livros e da usurpação de órgãos de escolas e bibliotecas escolares nos EUA, financiado por bilionários digitais apoiantes de Trump e outros cultores do pântano ultraconservador.
Teme-se que a vaga persecutória da década corrente nos EUA, de banimento de livros na Europa há alguns anos apenas, atemorize e constranja o trabalho e o uso das bibliotecas. Na viragem para o século 21, a crise do capitalismo tardio anseia que os avanços da guerra cultural lançada contra a esquerda, as ideias progressistas, e instituições internacionais como a UNESCO, lhe deem ração de combate e caminho batido. As bibliotecas não nos salvam da desdemocratização. Com serviços e edifícios públicos, de amplo uso, propiciam oportunidades de pensar e concretizar uma vivência democrática de que não podemos abdicar.
Artigo publicado originalmente em Anticapitalista #82 – Setembro 2025
