Assistindo à cobertura mediática dos eventos dos últimos tempos, desde a morte de Odair até ao genocídio na Palestina, passando pelas condenações de ativistas climáticos a penas de prisão, vem à mente o célebre poema do pastor luterano Martin Niemöller sobre a ascensão do nazi-fascismo: «Primeiro vieram atrás dos comunistas / E eu não falei /Porque não era comunista / Depois vieram atrás dos socialistas / E eu não falei / Porque não era socialista / Depois vieram atrás dos sindicalistas / E eu não falei / Porque não era sindicalista / Depois vieram atrás dos judeus / E eu não falei / Porque não era judeu / Depois vieram atrás de mim / E não restou ninguém / Para falar por mim.».
Estamos a assistir, em tempo real, à erosão acelerada da democracia e do Estado de Direito edificados no Ocidente do pós-Segunda Guerra Mundial. Mais do que os abomináveis eventos a que assistimos, é a reação das elites e o discurso público dominante que dão provas disso.
Impressiona a forma como discursos que há poucos anos seriam inaceitáveis, têm sido normalizados e ocupam hoje um espaço significativo no debate público. A distorção dos factos e a subversão dos valores éticos coletivamente aceites cavalgam sobre a apatia e impotência generalizadas. Assistimos a elaboradas cambalhotas intelectuais para justificar o injustificável. E, no entanto, a massa crítica social parece ter desaparecido, sendo tal raciocínio rocambolesco aceite sem grande indignação.
Os dois mais importantes tribunais internacionais (o Tribunal Penal Internacional e o Tribunal Internacional de Justiça) parecem ter perdido qualquer autoridade. O mesmo se verificando, com crescente gravidade, a respeito das Nações Unidas e dos respetivos representantes. Não há fonte rigorosa e fidedigna a atestar os crimes de guerra, contra a humanidade e de genocídio perpetrados por Israel que seja suficiente para estancar a narrativa pró-sionista abundante entre as elites políticas europeias e estadunidenses. O Direito Internacional contemporâneo enfrenta, sem dúvida, o seu derradeiro momento. Todos os conceitos criados nos últimos 80 anos, sob a égide da ONU, estão em risco de perder, por completo, o significado. Tanto no plano internacional como no plano interno, toda a estrutura jurídica sobre que tem assentado o mundo pós-1945 treme perigosamente.
Por cá, o assassinato de Odair deu lugar a um debate completamente estéril sobre tudo menos o essencial: elementos das forças de segurança mataram, arbitrariamente, um homem. À boleia desse tenebroso ato, com total desfaçatez, algumas forças políticas e policiais conseguiram conjurar uma nova narrativa social sobre os limites do protesto e a extensão, em quantidade e qualidade, do uso da força policial. As salvaguardas jurídicas que as democracias liberais andaram anos a propagandear como prova da sua superioridade político-moral entram numa crise sem precedentes.
As cada vez mais frequentes manifestações públicas de milícias e partidos de extrema-direita têm dado a machadada final na ilusão da tolerância e do multiculturalismo. Além da normalização de discursos atentatórios dos mais elementares valores democráticos, a assimetria no tratamento destes grupos em relação a outros grupos militantes por causas opostas desvenda, exemplarmente, o logro da neutralidade das instituições.
Tal conclusão aplica-se, inclusive, às próprias instituições judiciais. Basta analisar o julgamento de Cláudia Simões e o contexto que o antecedeu. Paralelamente, as últimas decisões condenatórias de ativistas climáticos por toda a Europa demonstram que o sério agravamento da repressão judicial sobre o protesto pacífico não é suficiente para inverter a narrativa corrente sobre o ativismo – mesmo quando assistimos, em tempo real, a uma catadupa de desastres climáticos, com o número de mortos a subir exponencialmente. O conceito de ‘crime’ começa a ficar quase tão vazio como as garantias jurídico-processuais que são sistematicamente negadas a estas pessoas. O princípio do Estado de direito desmorona-se com a multiplicação das "detenções preventivas" que duram dias, semanas e meses, com a aplicação de penas de prisão superiores a ativistas climáticos do que a agressores sexuais, com o silenciamento dos arguidos nas audiências de julgamento.
Esta lista poderia continuar, elencando todos os grupos minoritários e pessoas marginalizadas, todas as organizações que militam por causas progressistas e todos os povos desumanizados para os quais a democracia liberal, o Estado de direito e os direitos humanos não existem. Foi atrás deles que vieram primeiro, como no poema de Niemöller. E o discurso público hegemónico parece conseguir justificar tudo isso, fazendo quantas piruetas lógicas forem necessárias. A democracia está em alucinada vertigem, não tanto porque os horrores se multiplicam, mas porque eles são aceites como normais. O racismo das forças policiais, a brutalidade imperialista e a repressão sistemática sobre determinados grupos não são uma novidade. Mas havia um mínimo de pudor que mantinha a credibilidade das instituições internacionais e preservava as garantias elementares do Estado de direito democrático. O desaparecimento desse pudor abre espaço para que todos esses fenómenos se exponenciem com um ímpeto sem paralelo.Quando as decisões dos mais importantes tribunais internacionais são completamente desconsideradas pelos Estados; quando o assassinato de um homem às mãos da polícia dá lugar à defesa do reforço do uso da força policial; quando a "ordem pública" é mobilizada para justificar a violência e a opressão; quando o protesto pacífico é judicialmente qualificado como criminoso… é momento de falar. Caso contrário, de seguida vêm buscar aqueles que restam e não restará ninguém para falar por nós.
Artigo publicado em Sabado a 3 de novembro de 2024
