No primeiro volume da sua célebre trilogia (Empire), Michael Hardt e Antonio Negri descreviam a ordem mundial que se constituía no início do séc. XXI por oposição ao velho imperialismo colonial. O novo Império que se erguia na aurora do novo século era produto da globalização dos anos 90 e caraterizava-se, essencialmente, pela superação das estruturas modernas de poder, sobretudo o Estado-Nação. O aparato capitalista descentralizado, que prescindia de fronteiras e adotava formatos flexíveis impunha-se, impedindo a afirmação de qualquer centro político de poder global. A nova ordem mundial, segundo Hardt e Negri, seria imperial, e já não imperialista. Este novo Império, cuja força animante era o capitalismo global, legitimava-se através de uma ordem jurídica internacional assente em valores (manufaturados, claro) como os direitos humanos, o universalismo e o Estado de Direito.
Um quarto de século depois, a obra de Hardt e Negri tem tanto de próximo como de distante. A descrição do Império é um retrato autêntico da viragem do século e das transformações operadas pela globalização impulsionada pelo “fim da história”. O diagnóstico apresentado prenunciou, em boa medida, os tempos que se seguiram – a reação descentralizada verificou-se, de facto, nos movimentos sociais que se levantaram contra a austeridade (desde o Occupy Wall Street até aos Indignados) e que deram origem à Primavera Árabe. Todavia, diferentemente do esperado, tais movimentos não sucederam na deposição do Império do capitalismo global sem fronteiras, que hoje adquire contornos de “tecnofeudalismo”.
os valores fundamentais da tradição liberal ocidental são trucidados por uma onda agressiva de criminalização do protesto, institucionalização declarada do racismo e da xenofobia e regressão das conquistas seculares das classes trabalhadoras, das mulheres e das minorias
A mais forte investida contra esta ordem global imperial está hoje em curso, mas movendo-se no sentido diametralmente oposto ao dos grandes movimentos sociais do início do século. Essa investida brota nas latitudes mais improváveis, sendo, paradoxalmente, liderada pelos atores a quem melhor servia essa ordem global – as grandes potências ocidentais em geral e os EUA em particular.
Aquilo a que assistimos no Ocidente é o desmantelamento das estruturas axiais da ordem global dos últimos trinta anos, levado a cabo, ironicamente, pelos seus principais arautos. Assim se compreende a oposição militante da Administração Trump à ordem económica global, assente na liberalização das trocas comerciais supervisionada pela OMC e na inculcação do modelo de permanente austeridade aos países da periferia, organizada pelo FMI e pelo Banco Mundial. A esta luz pode ler-se também o completo descarte, quer pelos EUA quer pela UE, do Direito Internacional em matéria de conflitos armados, direitos humanos e crimes internacionais. No plano interno, as forças reacionárias apropriam-se da oposição à globalização capitalista, transmutando-a em nacionalismo isolacionista. Simultaneamente, os valores fundamentais da tradição liberal ocidental são trucidados por uma onda agressiva de criminalização do protesto, institucionalização declarada do racismo e da xenofobia e regressão das conquistas seculares das classes trabalhadoras, das mulheres e das minorias.
O grande paradoxo do nosso tempo reside no facto de serem as forças políticas que mais beneficiavam do sistema global imperial a liderar a contraofensiva
O grande paradoxo do nosso tempo reside no facto de serem as forças políticas que mais beneficiavam do sistema global imperial a liderar a contraofensiva. Ao contrário das previsões de Negri e Hardt, o Estado-nação não só não desapareceu, como parece estar a readquirir uma força que não se lhe conhecia há décadas. E a ordem jurídica internacional, que, claro, sempre foi constituída sobre um compromisso traduzido em ficções moralistas, tem vindo a ser trucidada precisamente por aqueles que, desde a criação das Nações Unidas, procuraram fazer dela um veículo da sua própria hegemonia. No âmbito doméstico, os pilares estruturantes das democracias ocidentais, tão apregoados como prova de superioridade moral, colapsam aceleradamente.
A investida da Administração Trump contra a liberalização das trocas comerciais internacionais e o clamor pela re-industrialização dos EUA (até agora, mero slogan) são a mais clara manifestação do regresso em força do Estado-nação. Todavia, este processo não começou nem se restringe à política estadunidense. Sem necessidade de alcançar o poder efetivo, os movimentos fascizantes que proliferam por todo o continente sucederam em pôr em marcha boa parte do seu programa político pelas mãos dos partidos do centro “moderado”, cujo extremismo fica cada vez mais notório. Desde as políticas anti-imigração até à obsessão com os currículos educativos, passando pela postura securitária perante os movimentos sociais que reivindicam habitação, solidariedade com a Palestina ou ação climática, os Estados europeus, pelas mãos dos partidos do centro (mais ou menos coligados com forças de extrema-direita), voltam a assumir tiques autocráticos. Um pouco por todo o mundo ocidental, portanto, a figura do Estado procura reafirmar-se por todos os meios, incluindo por meio da violência.
Um pouco por todo o mundo ocidental, portanto, a figura do Estado procura reafirmar-se por todos os meios, incluindo por meio da violência
O mesmo fenómeno se desenrola no plano internacional. Um ano e meio depois do início da mais recente e brutal fase do projeto genocida na Palestina, poucas palavras restam para condenar o posicionamento do mundo ocidental. Israel compreendeu corretamente que o permanente estatuto de exceção que lhe é reconhecido pelos EUA e pela União Europeia podia ser utilizado para encetar a limpeza étnica final da terra palestiniana. O Estado israelita é o único Etnoestado com um regime de apartheid institucionalizado que não suscita o menor horror nas elites liberais que se desdenham para condenar, do alto da sua superior consciência iluminada, qualquer outro Estado que se afaste do arquétipo do Estado laico e do liberalismo político. Evidentemente, chegaria o dia em que tamanha exceção conduziria ao fim da ordem jurídica internacional, alegadamente “pós-colonial” e alicerçada na liberdade e dignidade da pessoa humana. Os grandes arautos desta mesma ordem internacional colocam-se agora na posição ridícula de ameaçar juízes do Tribunal Penal Internacional, perseguir uma relatora das Nações Unidas, ignorar as decisões do Tribunal Internacional de Justiça, acolher, em visita oficial, um chefe de Estado sobre o qual pende um mandado de captura e ignorar a execução de crianças em filas de espera para obter comida.
Na Europa, múltiplos países têm mobilizado a legislação antiterrorismo para suprimir movimentos sociais
Internamente, o desmoronamento do Estado de Direito liberal desenrola-se em progressiva aceleração. Nos EUA, a dissidência estudantil foi reprimida com a suspensão arbitrária da concessão de títulos académicos – medida desprovida de qualquer enquadramento jurídico. A perseguição brutal aos trabalhadores imigrantes, por seu lado, adquire contornos distópicos, com milhares de pessoas a serem detidas arbitrariamente, sem acesso a quaisquer garantias processuais e colocadas em voos de deportação sem prévia decisão judicial. Na Europa, múltiplos países têm mobilizado a legislação antiterrorismo para suprimir movimentos sociais. Depois da criminalização do movimento climático na Alemanha e em França, o Reino Unido sobe a parada classificando o coletivo ‘Palestine Action’ como organização terrorista e organizando detenções em série daqueles que publicamente manifestam a sua solidariedade com os ativistas detidos. Por cá, foram aprovadas alterações à denominada Lei dos Estrangeiros, que, além de restringirem o acesso aos vistos de residência e o reagrupamento familiar, discriminam entre classes de imigrantes (“altamente qualificados” ou não). Por sua vez, a propósito da alteração da Lei da Nacionalidade, que será objeto de votação em setembro, procura regressar-se ao obscurantismo medieval, consagrando a perda da nacionalidade como sanção criminal. Por fim, a demolição das habitações precárias do bairro do Talude Militar pelo Executivo socialista demonstra como a legalidade só serve num sentido: para justificar as demolições, mas nunca para salvaguardar o direito das famílias desalojadas a uma efetiva alternativa habitacional, conforme previsto na Lei de Bases da Habitação.
O que a vista panorâmica apresentada permite concluir é que o desmantelamento da ordem liberal não é obra de um nicho de forças políticas de extrema-direita, mas antes obra conjunta dessas forças políticas e daqueloutras a que Tariq Ali chamou “extremo centro”
O que a vista panorâmica apresentada permite concluir é que o desmantelamento da ordem liberal não é obra de um nicho de forças políticas de extrema-direita, mas antes obra conjunta dessas forças políticas e daqueloutras a que Tariq Ali chamou “extremo centro” – desde o Partido Social-Democrata alemão até ao Partido Trabalhista britânico, passando pelo PS e pelo PSD em Portugal.
Perante este cenário dantesco, é urgente não ter medo das palavras. Assistimos à aurora de um movimento fascista internacional. Ainda na primeira metade do século passado, o exilado Thomas Mann já havia afirmado que, se um dia o fascismo chegasse à América, chegaria “em nome da liberdade”. O mesmo se aplica hoje a todo o mundo ocidental. A fascização das sociedades não precisa da tomada do poder pela extrema-direita que se assume enquanto tal; ela está a ser liderada pelos paladinos do liberalismo – a pulsão veio de dentro e reivindicando o ideal da liberdade. O porquê de assim ter sido merecerá reflexão noutro momento. Por ora, o essencial é que não nos deixemos iludir pelas aparências: o projeto político fascizante que se propõe implodir a ordem liberal deixou de ser marginal, sendo, cada vez mais, partilhado pelas forças políticas institucionalizadas; impõe-se, por isso, resistir-lhe, apresentando uma alternativa emancipatória que não se prenda com ficções liberais desacreditadas.
