Desgraçadamente sós: Portugal perante a Barbárie Israelita

porMaria J. Paixão

01 de outubro 2025 - 11:16
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Perante o vil posicionamento do governo português em relação ao genocídio na Palestina, o embarque da Sofia, da Mariana e do Miguel na Flotilha Sumud é, a dois tempos, um ato corajoso e um ato redentor.

Há duas alternativas para enquadrar a atuação de Paulo Rangel como Ministro dos Negócios Estrangeiros: ou está voluntária e conscientemente a violar o Direito Internacional e a Constituição portuguesa ou é incompetente. Nenhuma das duas abona em seu favor; e ambas atiram o Estado português para a posição de infrator e, pior que isso, para o lado errado da História.

Perante o vil posicionamento do governo português em relação ao genocídio na Palestina, o embarque da Sofia, da Mariana e do Miguel na Flotilha Sumud é, a dois tempos, um ato corajoso e um ato redentor. De facto, estarem três portugueses a bordo redime-nos, em parte, a nós enquanto povo, permitindo-nos traçar uma demarcação essencial nestes tempos obscuros: um povo não é o seu governo.

Tanto nos seus atos como nas suas declarações, Paulo Rangel apequena o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros, ironicamente dando cumprimento à designação formal do cargo – os negócios estrangeiros – em detrimento do respeito pela sua função material.

Abisma, desde logo, que continue a insistir na narrativa sionista da legítima defesa, falaciosa na origem e hoje completamente desgastada. É a própria essência da ideia de legítima defesa que impede a sua mobilização por uma potência ocupante, que, durante décadas, massacrou um povo, obrigou, pela violência, à deslocação massiva de pessoas e manteve uma permanente política persecutória e um regime de apartheid. Não é preciso ser especialmente letrado na matéria para compreender o evidente: o agressor não pode invocar legítima defesa perante o agredido que procura resistir. No caso particular de territórios ocupados, o absurdo é ainda mais claro: a potência ocupante não pode, obviamente, invocar legítima defesa contra o povo sob ocupação que luta pela sua emancipação. Se Israel não reconhece a Palestina como Estado, como poderá invocar legítima defesa contra o povo palestiniano, cuja autodeterminação, não só recusa, como reprime, pela violência, há mais de meio século?

Esta retórica delirante é, por si só, evidência do ímpeto genocida da política israelita. Só se explica porque Israel não reconhece, nem nunca reconheceu, a humanidade dos palestinianos, caso contrário haveria de lhes reconhecer o direito à autodeterminação e a resistir à opressão. Bem diferentemente, como tem sido afirmado até à náusea pelos responsáveis políticos israelitas, o povo palestiniano é considerado uma “praga” “sub-humana” de que Israel só se poderá “defender” por via da expulsão ou do extermínio.

De tão escabroso que é, seria de esperar que este discurso tivesse sido rapidamente marginalizado pela comunidade internacional.  Basta pensar que exatamente a mesma narrativa seria considerada lunática se invocada pelo Estado português para justificar a guerra colonial e os massacres praticados nos territórios moçambicano, angolano e guineense; ou pela Indonésia para legitimar os brutais crimes contra a humanidade praticados em Timor-Leste. Todavia, o projeto sionista granjeou um estatuto de exceção permanente sem precedentes, que é da responsabilidade particular dos Estados ocidentais.

Além desta incoerência de base, a contínua referência ao direito de Israel à “defesa” e à “segurança”, que continua a ser ecoada por Rangel, é hoje uma verdadeira obscenidade, depois de quase dois anos de campanha genocida. Afinal, Israel defende-se de quê? Uma das potências mundiais nucleares com mais avançada tecnologia militar e com um dos serviços secretos mais eficazes do mundo está a “defender-se” de um povo massacrado, faminto e sem lugar para onde ir? E essa potência, dispondo de um dos mais avançados aparatos tecnológico-militares de precisão, só consegue garantir a sua “segurança” executando crianças e jornalistas, obliterando zonas residenciais e toda a rede de cuidados de saúde e usando a fome como arma? Nem nas mais alucinadas conceções do direito de legítima defesa este cenário faz sentido.

A loucura de tudo isto é, aliás, suportada por decisões do Tribunal Internacional de Justiça (de 2004, sobre a construção do muro da Cisjordânia, e de 2024, sobre a política de Israel nos territórios palestinianos ocupados, incluindo Jerusalém Oriental) e por resoluções quer da Assembleia-Geral, quer, em outros tempos, do Conselho de Segurança das Nações Unidas. No entanto, parece que, por cá, a ONU é tida como corpo defunto.

Além da irracionalidade da análise, não se compreende como ignora Paulo Rangel os deveres jurídicos a que está vinculado o Estado português num cenário como aquele que nos chega todos os dias. O que se passa na Palestina (não só na Faixa de Gaza, mas também na Cisjordânia) é a barbárie total. Todos os elevados valores que, alegadamente, agregavam a comunidade internacional desde o final da Segunda Guerra Mundial estão a ser trucidados ali. Face a este cenário, sobre Portugal recai, desde logo, a obrigação de cooperar com outros Estados para pôr fim às atrocidades cometidas por Israel. É o próprio Direito Internacional que recusa pretensões de “neutralidade” ou indiferença perante horrores como o que se desenrola na Palestina. Isso mesmo ficou claro nas decisões do Tribunal Internacional de Justiça de 2004 e 2024, que afirmaram, ademais, o dever dos Estados de não colaborarem com Israel na manutenção da ocupação ilícita e da política de opressão e limpeza étnica. Na decisão de 2024, o Tribunal reafirmou ainda um dever de não reconhecimento que o Ministério dos Negócios Estrangeiros ignora completamente quando alerta a Sofia, a Mariana e o Miguel para os perigos associados à entrada em águas territoriais israelitas. Sabendo bem que a Flotilha não se dirige para Israel, mas para Gaza, o alerta só se compreende se o Ministro, em aberta contravenção com as normas internacionais, entender que Gaza é território israelita, e não palestiniano.

Portanto, mesmo afastando as óbvias considerações éticas sobre o posicionamento do governo português, é indiscutível que a atitude subserviente e conivente que vem sendo mantida é, por si só, uma infração internacional.

A petulância de Paulo Rangel face à barbárie israelita, além de politicamente confrangedora e eticamente deplorável, é ilícita

E este ponto merece ser sublinhado. A petulância de Paulo Rangel face à barbárie israelita, além de politicamente confrangedora e eticamente deplorável, é ilícita. Na sua ânsia de vassalagem, o governo português sujeita-nos a todos à indignidade de vivermos num Estado que nem o mínimo das suas obrigações jurídicas internacionais é capaz de cumprir.

Obviamente, nada disto se altera em virtude do recente ato de reconhecimento do Estado da Palestina – que é vazio em sentido, num momento em que o território e povo palestinianos estão devastados, e em eficácia, porque em nada alterou a política complacente anterior. Aliás, o contexto do reconhecimento não podia ser mais contrário ao seu suposto significado. Paulo Rangel disse, afinal, que espera que “Israel possa compreender” e que pretende manter boas relações com Telavive. A encenação não podia ter sido pior e deixou claro o essencial: Portugal continuará, como tem feito até aqui, a colaborar com Israel, desrespeitando todas as suas obrigações internacionais e viabilizando, por essa via, a continuação da política genocida.

Maria J. Paixão
Sobre o/a autor(a)

Maria J. Paixão

Assistente Convidada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Investigadora na área do Direito do Clima. Ativista pela Justiça Climática junto de vários movimentos sociais
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