A dívida pública ao serviço da acumulação do capital

porCristina Semblano

03 de outubro 2025 - 11:08
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A missão do macronismo consiste em salvaguardar os rendimentos do capital, pondo ao seu dispor uma força de trabalho cada vez mais precária e mal paga e inundando-o de prendas fiscais e subvenções.

Um espectro assombra a França: o espectro da dívida pública. A dar crédito à narrativa do ex-primeiro-ministro, oriundo, à semelhança do seu antecessor, da minoria parlamentar, o povo francês tem uma elevada adicção à despesa pública. E foi o carácter inelutável da hecatombe que daí adviria que conduziu o ex-chefe do governo a mobilizar o artigo 49.1 da Constituição do país para solicitar a confiança da Assembleia Nacional em torno da questão geral da dívida. O resultado foi o expectável: a queda do governo, já que só as forças políticas minoritárias na assembleia (macronistas e direita) votaram a favor da moção de confiança.

O facto de a sessão extraordinária da Assembleia Nacional ter sido convocada para o dia 8 de Setembro, ou seja dois dias antes de uma mobilização geral cidadã em todo o país, não parece ter sido fruto do acaso, mas antes, da vontade de desmobilizar os manifestantes e/ou de os apresentar como os “engenheiros do caos”, irresponsáveis perante a situação dramática do país: um país que está prestes a esbarrar no gigantesco muro da dívida, pronto a desencadear a fúria dos mercados financeiros e transformar-se numa nova Grécia, se medidas urgentes e drásticas não forem tomadas.

As medidas em causa são as que o ex-chefe do governo tinha apresentado na conferência de imprensa do passado 15 de julho, as mesmas que estiveram na origem da manifestação cidadã do dia 10, convocada nas redes sociais, à qual aderiram alguns partidos políticos e sindicatos. Tais medidas prevêem um corte de 44 mil milhões de euros no OE para 2026, afectando o trabalho, a saúde, a educação, as reformas, o seguro de desemprego e, de uma forma geral, o Estado social. Praticamente, só as funções soberanas do Estado (segurança e defesa) foram objecto de aumentos de dotações, particularmente substanciais para a defesa. O objectivo é reduzir o défice público (actualmente 5,8% do PIB) e a dívida pública (114%).

A dívida pública francesa não constitui, de per si, um problema, sendo uma matéria-prima muito atractiva para os investidores: à ausência de problemas de financiamento (as ofertas de compra da dívida chegam a atingir o triplo da procura) juntam-se as baixas taxas de juro que lhe estão associadas. Ora, apesar das subidas recentes, de que parte é provocada pela instabilidade política criada (dissolução de julho de 2024, apresentação da moção de confiança, etc.), as taxas de juro continuam a um nível baixo (em torno de 3,5%), tendo a recente degradação da notação da França deixado os mercados impávidos. O país tem, portanto, margem para chegar à situação da Grécia de Tsipras (com taxas nos 37%) que o ex-primeiro ministro lhe acenou como destino, se nada fosse feito para reverter a situação.

Posto isto, a degradação das finanças públicas francesas, que é real, deve-se a dois factores: a insuficiência de receitas públicas e a quase ausência de crescimento económico, ambas com origem na política da oferta, tão cara a Emmanuel Macron.

Consistindo em prendas fiscais e vultosas subvenções ao capital sem qualquer contrapartida a nível económico, social ou ambiental, a política da oferta deveria, segundo os seus promotores, traduzir-se em investimento, criação de emprego, aumento do consumo e crescimento económico. Mas inundar de dinheiro os mais ricos (as grandes empresas e as famílias do topo da pirâmide) não se traduziu no apregoado gotejamento para o conjunto da economia, a qual, pelo contrário tende à estagnação. Não admira pois, que, paralelamente ao crescimento estratosférico dos dividendos impulsionado pelas benesses estatais, se tenha assistido à degradação das finanças públicas e ao aumento da pobreza e das desigualdades.

Mas, longe de pôr em causa uma política que se revelou contraprodutiva – atendendo aos objectivos apregoados –, o Presidente Macron fez tudo por tudo para com ela prosseguir. É em função deste objectivo que se deve interpretar, a nosso ver, o golpe de Estado institucional que desferiu após as eleições antecipadas de julho de 2024, com a nomeação, pela primeira vez na história da V República, de um primeiro-ministro não oriundo da coligação vencedora das eleições, ou seja Michel Barnier, atitude que reiterou, após a queda deste, com a nomeação de François Bayrou e agora de Sébastien Lecornu.

É que, mandatário do capital de que é oriundo, Emmanuel Macron tem como único objectivo servir o capital. Ora, como sublinha o economista R. Godin, o capitalismo francês – que, à semelhança da economia mundial, nunca conseguiu recuperar da crise de 2007-2008 – defronta-se com uma grave crise de acumulação do capital, devido à degradação dos ganhos de produtividade. A missão do macronismo consiste, por conseguinte, em salvaguardar os rendimentos do capital, pondo ao seu dispor uma força de trabalho cada vez mais precária e mal paga e inundando-o de prendas fiscais e subvenções. Só as subvenções representaram, no último ano, 211 mil milhões de euros, ou seja 3,4 vezes os encargos com os juros da dívida em 2025.

Longe de ser adicta à despesa pública, a esmagadora maioria dos trabalhadores franceses é chamada a apertar cada vez mais o cinto para compensar o manque à gagner de receitas públicas e financiar as subvenções ao capital. Em vez de falar de adicção do povo francês à despesa pública, o ex-primeiro ministro teria dito a verdade se referisse a toxicodependência do capitalismo francês em relação ao Orçamento do Estado e a sua responsabilidade no aumento da dívida pública.

Artigo publicado em publico.pt a 25 de setembro de 2025

Cristina Semblano
Sobre o/a autor(a)

Cristina Semblano

Doutorada em Ciências de Gestão pela Universidade de Paris I – Sorbonne; ensinou Economia portuguesa na Universidade de Paris IV -Sorbonne e Economia e Gestão na Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle
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