A Escola Pública é, porventura, a mais significativa conquista do Portugal democrático. É, certamente, uma das duas maiores conquistas de Abril, ao lado do Serviço Nacional de Saúde. Nos anos 70, a taxa de analfabetismo portuguesa era das maiores da Europa, estando ao nível das estimativas para outros países europeus no início do séc. XX. Em 1970, um em cada quatro portugueses era analfabeto (portanto, 25% da população não sabia ler nem escrever), subindo a taxa para acima dos 60% no caso das mulheres. E mesmo entre a população em idade escolar que frequentava a escola, em 1974, apenas 26% ia além do ensino primário e só cerca de 5% chegava ao ensino secundário. Todos estes números se tornam ainda mais aberrantes se comparados com os restantes países europeus, mesmo a vizinha Espanha, que também vivia ainda, à época, sob o punho de el caudillo Franco.
A evolução das taxas de escolaridade após o 25 de Abril é extraordinária, merecendo elevação a grande feito nacional. E ao invés do que é por vezes apregoado, a evolução na taxa de escolaridade foi acompanhada por uma evolução concomitante na qualidade do ensino, com os alunos portugueses a apresentar resultados significativamente melhores ao longo dos anos. Além de combater a miserável falta de instrução no país, a Escola Pública tem desempenhado um papel basilar de estruturação do tecido social. Por exemplo, segundo o PISA de 2022, Portugal é o país do mundo com menor taxa de insegurança alimentar nas escolas – é nas escolas portuguesas que menos crianças passam sem comer por falta de dinheiro. Da alimentação ao abrigo, a escola pública é, muitas vezes, a linha mais avançada do Estado Social, contribuindo das mais diversas formas para criar condições de vida dignas para as nossas crianças. Embora muito se possa discutir sobre se esse deve ou não ser o papel da escola, sobretudo quando os vários atores educativos, desde os professores até aos auxiliares, são esmagados por um sistema em deterioração há décadas, parece indiscutível o papel axial da Escola Pública no progresso nacional.
Pese embora tudo o que lhe devemos, também a Escola Pública, a par do Sistema Nacional de Saúde, se encontra sob ameaça existencial. A mais recente manifestação desta ameaça reside no processo de digitalização estouvada do ensino. Nas últimas semanas têm sido realizados "exames teste" em várias escolas do país, tendo em vista a instituição de provas digitais, em substituição das provas em papel. Este é apenas o mais recente passo na digitalização extensiva em curso, que já inclui, por exemplo, a implementação de manuais digitais.
A escola pública portuguesa tem-se confrontado com problemas seríssimos, que ameaçam a sua sobrevivência – desde as abomináveis condições oferecidas aos professores, que dão origem a uma "escassez" destes profissionais, até à perda de aprendizagens devida ao encerramento prolongado das escolas durante a pandemia, passando pelo encerramento definitivo de escolas durante os anos da troika, que, além de alimentar as dinâmicas de desertificação do interior, deu lugar à criação de "mega agrupamentos" em permanente sobrecarga. Todavia, a dimensão dos desafios enfrentados não parece ser suficiente para deter os decisores políticos de criar mais uma série de problemas desnecessários. É precisamente esse o principal resultado da mais recente euforia pacóvia com a digitalização dos exames. Enquanto vários países da Europa começam a repensar a digitalização do ensino operada nas últimas décadas, por cá acelera-se a toda a velocidade para um futuro em que a pedagogia é substituída pela tecnologia.
Honrando a natureza semiperiférica da nossa localização geopolítica, chegamos às tendências internacionais com atraso e entusiasmo excessivo. Num tempo em que tudo é uma "transição" – e, em especial, uma "transição digital" – também a escola é forçada a transitar. Independentemente dos méritos que possam reconhecer-se à introdução das tecnologias na escola (que os há, como é evidente), o certo é que a política educativa dos últimos anos se reduz a uma sucessão de decisões irrefletidas e desarticuladas, ignorando qualquer ordem de prioridades e prescindindo de uma reflexão profunda e alargada sobre o futuro da educação. Gastam-se recursos públicos desregradamente para comprar computadores, ignorando as reais necessidades das escolas (quer ao nível das infraestruturas, quer ao nível da remuneração do pessoal). Não será arriscado afirmar que a maioria dos alunos e professores prefere instalações confortáveis e climatizadas do que computadores para fazer exames. Ademais, força-se a comunidade escolar a adotar novas técnicas de avaliação sem debater a questão com os interessados e com a comunidade em geral. Por fim, envereda-se pelo caminho da digitalização desenfreada sem retirar as devidas conclusões da experiência e resultados obtidos com o uso destas tecnologias durante a pandemia.
Não deixa de ser curioso que, enquanto se discutem medidas de contenção do uso dos telemóveis nas escolas, se planeie a digitalização extensiva do ensino. Este tipo de contrassenso é o resultado natural de uma política educativa elaborada ao sabor de tendências, destruturada e sem qualquer projeto de base para o futuro da educação. As mesmas pessoas que alertam para os impactos perniciosos dos smartphones nas aprendizagens, pretendem que essas aprendizagens passem a ser mediadas por computadores e ecrãs. Um cenário bizarro como este, bem como a manifesta falta de oposição crítica exprimida no espaço público, só são possíveis numa sociedade que se demitiu, há muito, de se debater e questionar.
Hoje, como sempre, o ensino integral e emancipatório depende irremediavelmente das relações humanas entre aluno e professor. O fervor em torno da digitalização não passa de mero tokenismo, atacando a essência humanista da educação pública em troca do slogan da "modernização".
Artigo publicado em Sabado a 23 de fevereiro de 2025
