A precariedade e insegurança da carreira científica, abordadas na crónica anterior, só são equiparáveis à precariedade e insegurança da carreira académica em Portugal. A crise que ameaça a docência no ensino superior tem sido menos discutida do que aqueloutra que se abate sobre o ensino básico e secundário, mas todos eles são assombrados por um idêntico futuro sombrio.
A lógica da austeridade economicista é partilhada entre o setor da investigação científica e o ensino superior. Aliás, o modelo de carreira no ensino superior que se tem estruturado nas últimas décadas força uma fusão parcial (pelo menos, num sentido) entre os setores, com os docentes universitários a assumirem também, obrigatoriamente, funções de investigação.
Segundo os dados da Direção-Geral de Estatísticas de Educação e Ciência, quase metade dos docentes do ensino superior são "convidados", onde se incluem monitores, leitores, assistentes e professores das diversas categorias. Os ‘docentes convidados’ são contratados a termo certo e em regime de tempo parcial, não estando integrados na carreira. Daqui resulta, como bem se compreende, que uma parte significativa dos docentes do ensino superior em Portugal está contratado a termo, recebe uma remuneração reduzida, uma vez que se vê forçada a exercer funções a tempo parcial, e não goza dos direitos e garantias concedidos aos docentes de carreira. Em virtude deste quadro indigno, muitos dos docentes convidados são impelidos a desempenhar, simultaneamente, outras funções profissionais não docentes, de modo a obter um rendimento que permita cobrir as despesas pessoais e familiares. Esta necessidade de desdobramento profissional torna-se ainda mais afrontosa se compararmos o número de horas lecionadas pelas duas categorias, verificando-se que os docentes não integrados na carreira frequentemente lecionam mais horas dos que os colegas integrados na carreira (apesar de auferirem remunerações inferiores) por não lhes serem aplicáveis os limites horários previstos para a carreira docente.
O recurso à contratação de docentes convidados, em detrimento da integração dos docentes na carreira, deveria ser, nos termos da lei, excecional. Todavia, ao longo das últimas décadas, tem se verificado o uso sistemático desta figura como forma de contornar o subfinanciamento crónico das instituições de ensino superior. Tanto para os docentes como para as instituições de acolhimento, o recurso a esta categoria é, muitas vezes, a única alternativa a deixar esvaziar o ensino superior de docentes.
Cabe ainda dizer que, embora gozem de maior estabilidade e salários mais justos, os docentes de carreira também enfrentam múltiplos constrangimentos no exercício das suas funções. Desde logo, estão sujeitos a um sistema de avaliação completamente divorciado dos ideais humanistas que inspiraram a ideia de universidade. Trata-se de um sistema assente em indicadores de produtividade que tornam a academia um espaço de estandardização e concorrência, onde a qualidade pedagógica está subalternizada a métricas que nada dizem sobre a qualidade do ensino ministrado. Também para os docentes de carreira se impõe uma "lógica de sobrevivência", estando a progressão na carreira dependente do cumprimento de exigências hercúleas e injustificáveis.
A obsessão com a eficácia e com a performance tem, portanto, condicionado a carreira académica de forma estrutural. No plano macro, tem forçado as instituições de ensino superior a depender de mão de obra precária e de baixos salários; e internamente tem atirado os docentes do ensino superior para uma corrida destrutiva que os obriga a focarem-se em tudo menos na qualidade pedagógica do ensino. Também neste contexto, como no setor da ciência e investigação, as condições de exercício da profissão produzem um duplo efeito nefasto. Por um lado, uma carreira com estas caraterísticas não é convidativa para nenhum jovem recém-formado. A perspetiva de anos, se não décadas, de instabilidade, rendimentos parciais e exigência de produção sobre-humana afastam, compreensivelmente, a maioria dos potenciais interessados. Também aqui, portanto, se deveria focar o debate em torno da "fuga de cérebros", em vez de nos habituais incentivos bacocos à permanência em Portugal. Por outro lado, quanto aos que optam por lutar por um lugar na carreira, o modelo implementado, não só é tortuoso do ponto de vista psicológico, como é muitíssimo prejudicial para a qualidade do ensino superior português. Exercendo múltiplas funções, dentro e fora da academia, os docentes não encontram nem tempo nem espaço mental para se dedicarem cuidadamente àquela que deveria ser a sua tarefa principal: ensinar. Como bem se compreende, além de nocivo para os próprios, este sistema prejudica também os alunos e as próprias instituições de ensino superior. O nível pedagógico de uma instituição nunca poderá ser excelente se uma parcela significativa do corpo docente trabalha a tempo parcial, cansado e desmotivado.
Se a investigação deveria ser encarada como despretensiosa arte do conhecimento, a docência haveria de ser reconhecida como a arte de aprender e ensinar. O processo dialético entre a aprendizagem e o ensino, sem o qual não há verdadeira docência, leva tempo e exige um espírito disponível. O atual modelo da carreira académica em Portugal é tudo menos isso – é pressão, ansiedade e precariedade.
Uma sociedade próspera depende de uma academia livre e vibrante, e só há liberdade onde as pessoas trabalham com segurança, direitos e tranquilidade. Acabo por isso como terminei a crónica irmã desta: Enquanto continuarmos a insistir numa austeridade economicista na academia em Portugal, continuaremos a condenar o país a ser uma fração daquilo que poderia ser.
Artigo publicado em Sabado a 16 de novembro de 2024
