Já ninguém sabe nada

porDaniel Moura Borges

31 de julho 2025 - 16:44
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O que a esquerda conseguiu fazer há mais de uma década com a crise financeira, a extrema-direita consegue agora fazer com a imigração. É uma política de indignação ancorada na constatação de que a promessa do neoliberalismo falhou. Reconquistar esse espaço exige dois movimentos diferentes.

Quando Billy Bragg publicou a música No One Knows Nothing Anymore (“Já ninguém sabe nada”, em português), o mundo era diferente. Em 2013, uma onda de indignação contra a crise das dívidas soberanas lançava-se sobre a América do Norte e a Europa, a esquerda assumia-se como protagonista contra a falência do neoliberalismo e impunha o fim a uma época em que se dizia que “não há alternativa”.

Pouco depois do incontornável cantautor de protesto britânico lançar a música, que traduz um sentimento de descredibilização do modelo tecnocrata que reina na Europa, deu-se um dos mais caricatos acontecimentos na história do debate sobre política económica e financeira.

Os economistas Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff tinham defendido, em 2010, que o crescimento económico real médio de um país abranda (um declínio de 0,1%) quando a dívida de um país aumenta para mais de 90% do Produto Interno Bruto. Dentro do paradigma tecnocrático das instituições financeiras, foi considerada uma crítica fulminante ao keynesianismo e usada como argumento pela direita para impor a austeridade.

Mas essa teoria colapsou em 2013, quando investigadores da Universidade de Massachusetts Amherst constataram que os cálculos de Reinhart e Rogoff estavam incorretos devido a um erro na folha de Excel. Na verdade, quando as contas eram feitas de forma correta, o declínio de 0,1% transformava-se num aumento médio do crescimento económico de 2,2%, provando o contrário da tese original.

O episódio ficou conhecido como o “erro Reinhart-Rogoff” e o seu caráter absurdo foi uma espécie de pedra de toque para confirmar a ideia de que “já ninguém sabe nada”. Nos movimentos Occupy, como nos protestos contra a austerida no sul da Europa, tornou-se claro que havia um povo que já não estava disposto a aceitar regras impostas por um sistema que não beneficiava as pessoas.

Mais de dez anos volvidos desde tudo isso, a mesma ideia foi capturada pela extrema-direita. Os melhores exemplos disso são as reações à gestão da pandemia, o surgimento de grandes teorias de conspiração, uma crítica contraditória à globalização, e a política feita com base em perceções.

O que é que isso nos diz? O espaço da crítica à tecnocracia foi comido pela extrema-direita, que arranjou saliências sobre as quais atuar. O que a esquerda conseguiu fazer há mais de uma década com a crise financeira, a extrema-direita consegue agora fazer com a imigração. É uma política de indignação ancorada na constatação de que a promessa do neoliberalismo falhou.

Reconquistar esse espaço exige dois movimentos diferentes. Um para disputar a crítica dura à tecnocracia, que se alicerce nas incoerências da crise de acumulação que vivemos. Em vários sítios, essa disputa tem sido feita sobre a taxação dos ricos, mas em Portugal essa frente é muito recuada. Na crise de habitação poderemos encontrar brechas para esse discurso, mas é preciso não deixar que o tema comece a ser cooptado pela extrema-direita, como já começa a ser.

O segundo movimento é para imaginar uma realidade para além da tecnocracia. Aí, ajudam-nos ideias e propostas de solidariedade que são mais do que retórica. Propostas que parecem impossíveis sobre as amarras da tecnocracia, mas cuja lógica é tão senso comum que parecem inevitáveis. Elas já existem: um Serviço Nacional de Cuidados, um programa de adaptação às alterações climáticas com foco nos empregos para o clima, uma semana de trabalho de quatro dias.

No fundo, estes dois movimentos criam uma tensão com o paradigma existente. Uma aponta o absurdo, outra a alternativa. Que é como quem diz: se já ninguém sabe nada, então o que sempre nos disseram que era impossível está, na verdade, ao nosso alcance.

Daniel Moura Borges
Sobre o/a autor(a)

Daniel Moura Borges

Militante do Bloco de Esquerda.
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