Lá onde o fogo lavra

porMaria J. Paixão

02 de setembro 2025 - 16:37
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Os incêndios florestais que assolam o país todos os anos não são uma tragédia; são, isso sim, a consequência inevitável de um território abandonado sujeito a um clima cada vez mais hostil.

Dobrámos o meio de agosto e da porta principal de casa vejo uma coluna de fumo cinzenta que se levanta por detrás da colina. Mais tarde, vem o cheiro a queimado e as cinzas que caem do céu. Dizem que a meio da tarde o vento pode virar; e, se virar, traz o fogo para a encosta de cá. O estremecimento é muito maior entre os que são de fora do que entre os que são de cá. Quem vive no interior conhece bem as suas serras e o fogo que as devora todos os anos. Não sentem, por isso, o pânico do desconhecido. Sentem, isso sim, raiva, exaustão e desesperança.

Depois de mais uma época de incêndios, em que, como habitual, se assiste a um desfile de incompetência política e a uma insofrível cobertura mediática, abre-se a micro-janela anual em que se discute o tal “Portugal profundo”. Fala-se exaustivamente de “meios”, de “fogo posto” e de “agravamento das penas”, atiram-se culpas e explora-se, da forma mais indigna possível, o sofrimento alheio. Metade do país recorda-se, por esta altura, que existe um outro Portugal, com sotaque orgulhoso e espírito de resistência.

Desde o lobby das celuloses, que transformou o país numa caixa de fósforos, até à mudança das condições climatéricas. Os incêndios florestais são a mais aguda manifestação do fosso colossal entre as gentes do interior e um sistema que, quando não as abandona, as esmaga

Do que nunca se fala é do que realmente interessa. Desde o lobby das celuloses, que transformou o país numa caixa de fósforos, até à mudança das condições climatéricas, em resultado da qual o centro e norte do país se tornaram zonas de sacrifício. Do que também nunca se fala é de como os incêndios florestais são a mais aguda manifestação do fosso colossal entre as gentes do interior e um sistema que, quando não as abandona, as esmaga.

Esta é a conversa que devia ocupar o espaço público – sobre a expropriação brutal de que o interior tem vindo a ser alvo nas últimas décadas. Primeiro, a Política Agrícola Comum e a modernização forçada e atabalhoada destruíram a agricultura de subsistência e de pequena dimensão que ocupava as terras de todo esse país que se estende além da faixa Lisboa-Porto. A produção agrícola foi transformada em meganegócio e deslocada para outras latitudes, pisando-se, pelo caminho, todos aqueles que viviam diretamente da terra. Depois, vieram décadas de ausência de política industrial nacional e a desindustrialização quase total do país. A orientação para o espaço europeu foi clara: concentrar a indústria europeia no eixo franco-alemão e deixar o resto da Europa dependente e subalterno. Neste quadro, o interior, que deixou de ser agrícola à força, não pode, em compensação, industrializar-se. E, por fim, veio a obsessão fanática com o turismo. Num processo paralelo ao que arrastou todo o país para o lugar de parque de diversões para turistas, o interior viu-se reduzido a uma caricatura de si próprio. As suas tradições e as suas gentes passaram a ser um mero postal, também eles produto para ser vendido.

Concluído este processo de expropriação dos modos de vida endógenos, o êxodo de pessoas não podia deixar de ser massivo. Apesar da coragem dos que ficaram, muitos foram os que se viram obrigados a ir. Nesse interior cada vez mais despovoado, começaram, subsequentemente, a ser desmantelados os serviços públicos e as infraestruturas essenciais. Retiraram-se as caixas de multibanco. Fecharam-se as escolas. Encerraram-se as repartições de finanças. Reduziram-se os horários dos centros de saúde. Diminuiu-se a frequência dos transportes coletivos. Encerraram-se os correios. E, por fim, reduziu-se o pessoal do que restou ao mínimo indispensável.

Para quem resiste no interior do país, Lisboa nunca esteve tão distante

A distância entre o litoral e o interior, a cidade e o campo, foi, assim, crescendo… apesar da proliferação selvagem de autoestradas, IP’s, IC’s e afins. Para quem resiste no interior do país, Lisboa nunca esteve tão distante. Lá discutem-se políticas e criam-se leis que nada dizem a quem foi deixado à sua sorte, para ser esmagado por um sistema trucidador.

Por todo o lado, a paisagem é hoje dominada por espécies não autóctones e invasivas, combustível ideal para os dias cada vez mais quentes que enfrentamos

Este interior esquecido foi rapidamente canibalizado pelos interesses económicos que lucram com a destruição da vida. Com o esmorecimento da resistência popular como aquela a que assistimos em Veiga de Lila em 1989, o eucaliptal consumiu toda a terra que conseguiu. As terras não cultivadas e abandonadas por aqueles que tiveram de rumar à cidade em busca de uma vida melhor ficaram à mercê das celuloses. Por todo o lado, a paisagem é hoje dominada por espécies não autóctones e invasivas, combustível ideal para os dias cada vez mais quentes que enfrentamos.

Além do abandono, a distância em relação aos centros de decisão cresce na medida do cada vez maior alheamento dos decisores políticos em relação à vida e experiência do interior. A legislação que foi sendo regurgitada pelos sucessivos governos ao longo dos últimos anos é completamente cega às práticas locais sustentadas pela sua ancestralidade. Assim é, por exemplo, com a regulamentação das queimas e queimadas, que burocratiza e criminaliza práticas essenciais à atividade pastorícia e agrícola, em vez garantir a sua segurança com o apoio das instituições. Igual dissociação atravessa a legislação dedicada à limpeza dos terrenos. Gonçalo Ribeiro Telles afirmou um dia que “a limpeza da floresta é um mito”, assim dando voz à intuição daqueles que melhor conhecem as nossas serras. Tradicionalmente, a “limpeza” era uma operação agrícola, o que deixou de ser possível numa paisagem dominada pela monocultura florestal. No topo de todo este acervo legal temos ainda impulso frenético de agravamento da pena do crime de incêndio, que não serve para mais do que para alimentar a euforia carcerária que reemerge todos anos por esta altura.

Esta discrepância entre as decisões centrais e o conhecimento local marca também, cada vez mais, o próprio combate aos incêndios. Naquela mesma tarde de agosto em que caíam cinzas do céu, enquanto esperávamos por saber se o fogo ia virar para a encosta de cá, chegavam notícias de múltiplos impasses no combate às chamas. Em algumas regiões, carros de bombeiros vindos de outras zonas do país eram abastecidos por tratadores de agricultores, não conseguindo deslocar-se pelas estradas sinuosas que só os locais conseguem navegar. Noutras, destacamentos inteiros aguardavam eternamente por ordens. Em alguns locais, essas ordens, que viriam de longe, não chegaram por dias. E quando chegaram, suscitaram, não poucas vezes, a indignação dos residentes, que, apesar de conhecerem aquelas encostas como ninguém, não têm qualquer voto na matéria. Entre o ir e vir de ordens, nos cafés das aldeias e vilas comentava-se que foi assim que aconteceu Pedrógão. Tendo suportado o violento processo de destruição do seu modo de vida, a raiva latente no peito destas pessoas é precisamente sobre isto: ninguém conhece aqueles territórios como elas, mas há sempre alguém, num gabinete à distância, que se permite ignorá-las.

A autêntica história que os incêndios em Portugal nos contam é esta: a de um interior empurrado para as margens

Nas reportagens televisivas, estas pessoas são os “populares” que “sofrem” com a “tragédia”. Nada podia estar mais longe da realidade. Os incêndios florestais que assolam o país todos os anos não são uma tragédia; são, isso sim, a consequência inevitável de um território abandonado sujeito a um clima cada vez mais hostil. E as pessoas que residem no interior não precisam da condescendência urbana; pelo contrário, elas têm as respostas que as televisões procuram em infinitos debates e comentários – só que nunca ninguém lhes pergunta nada. A reportagem que mereceriam era uma que lhes perguntasse porque ardem tanto as suas serras e o que fazer para acabar com esse flagelo. Menos capitalização com a dor alheia e mais dignificação.

A autêntica história que os incêndios em Portugal nos contam é esta: a de um interior empurrado para as margens. Tudo o resto é paternalismo, arrogância e, sobretudo, ignorância.

Maria J. Paixão
Sobre o/a autor(a)

Maria J. Paixão

Assistente Convidada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Investigadora na área do Direito do Clima. Ativista pela Justiça Climática junto de vários movimentos sociais
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