O 25 de Novembro enquanto farsa

porFernando Rosas

17 de setembro 2025 - 18:21
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Não é difícil prever o que daqui sairá como “comemorações oficiais”: o espectro do novembrismo militarista em parada.

Num dos seus mais conhecidos escritos histórico-políticos, Karl Marx lembrou que o filósofo alemão Hegel fez notar que “os grandes acontecimentos e personagens históricas ocorrem, por assim dizer, duas vezes”. Mas, segundo Marx, ter-se-ia esquecido de acrescentar: “a primeira como tragédia, a segunda como comédia”.

Precisamente no caso presente, o Governo do PSD, não podendo reeditar a tragédia, ficou-se pela farsa: decretou umas “comemorações oficiais” do contragolpe militar do 25 de Novembro de 1975. E, como o assunto queima, entregou-as, à laia de prémio de consolação, ao improvável ministro da Defesa e exuberante chefe do CDS, Nuno Melo. O desenterrar pelo Governo da direita do novembrismo ultramontano e o propósito explícito de oficializar a comemoração assumem, é bom que se diga, o carácter de uma farsa duplamente funérea.

Em primeiro lugar, porque a sua organização é promovida por um partido-fantasma, política e socialmente inexistente, o CDS, cuja base social, como toda a gente sabe, há muito se esfumou e dissolveu nos demais partidos da direita e extrema-direita lusitana. Dito de outra forma: é uma sigla fantasmática transportada por uns cavalheiros a quem o PSD fez o favor de pendurar numa dita Aliança Democrática para fingir que ela existe. Uma esmola política que descompromete o PSD com cavalarias altas, mas evidencia a radicalização à direita do partido do Governo.

O propósito ideológico é já antigo na direita e extrema-direita portuguesa: fazer do novembrismo autoritário, colonialista e ressabiado o paradigma ideológico do regime antidemocrático que pretendem impor ao país

Em segundo lugar, porque nada desta farsa fúnebre das “comemorações oficiais” do novembrismo tem que ver com qualquer vislumbre de debate historicamente sério e pretendidamente esclarecedor sobre a efeméride. O seu assumido propósito ideológico é já antigo na direita e extrema-direita portuguesa: fazer do novembrismo autoritário, colonialista e ressabiado o paradigma ideológico do regime antidemocrático que pretendem impor ao país. E, com isso, procurar “limpar” a memória libertadora do 25 de Abril e da revolução portuguesa de 1974/75. Passo indispensável para legitimar simbólica e politicamente o autoritarismo de novo tipo que transporta, nos dias de hoje, a aliança tendencial das direitas tradicionais com a nova extrema-direita.

Basta atentar na composição (tutelada pelo galhardo ministro da Defesa) da comissão constituída para o efeito. Uma espécie de top ten das mais jurássicas entidades da nostalgia colonialista e neo-salazarista que por aí subsistem em estado mais ou menos vegetativo. A título de exemplo: a Sociedade Histórica da Independência de Portugal (que coabitou física e espiritualmente no antigo Palácio dos Almadas com a milícia da Mocidade Portuguesa durante 34 anos), onde pontifica o dr. Ribeiro e Castro, outro ex-dirigente do CDS; a Comissão Portuguesa de História Militar, ligada ao Ministério da Defesa, encarregada da crónica legitimadora das guerras do colonialismo português em África; e, para apimentar a coisa, a Associação dos Comandos! Nem sequer lá falta, para garantir o policiamento ideológico do grupo, a presença do director-geral da Política de Defesa Nacional. Não é difícil prever o que daqui sairá como “comemorações oficiais”: o espectro do novembrismo militarista em parada.

É claro que os golpes e contragolpes do 25 de Novembro de 1975 existiram como evento político-militar relevante na história do processo revolucionário iniciado no 25 de Abril. E desaguaram, como é sabido, na contenção pactuada do processo revolucionário negociada entre alguns dos seus principais intervenientes. Desses compromissos nasceram a Constituição de 1976 e as instituições do regime democrático. Foi um processo complexo que dividiu opiniões até hoje e merece absolutamente ser estudado de forma rigorosa, plural e com o benefício da distância de meio século. Cruzando fontes, testemunhos e várias gerações de investigadores, designadamente no âmbito das iniciativas que assinalam o cinquentenário do 25 de Abril, a cujo processo se ligam, obviamente, os acontecimentos do 25 de Novembro. Do que aqui se trata é de saber se o faremos como campanha governamental de manipulação ideológica permanente ou como debate livre e enriquecedor da cidadania democrática.

Assim sendo, como escreveu um antigo pensador chinês, só se pode desejar “que mil flores floresçam e que cem escolas rivalizem”. Cada um fará sua a que entender melhor servir para fazer face à tempestade que espreita.

É isso que é a democracia. O de mais é a farsa administrativa e sombria, paga, convém lembrar, pelos contribuintes.

Artigo publicado no jornal Público a 15 de setembro de 2025

Fernando Rosas
Sobre o/a autor(a)

Fernando Rosas

Historiador. Professor emérito da Universidade Nova de Lisboa. Fundador do Bloco de Esquerda
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