O apagamento do futuro

porMaria J. Paixão

14 de maio 2025 - 21:04
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A comunidade científica tem alertado, há décadas, para o passo acelerado a que nos encaminhamos para o colapso do sistema climático e para os respetivos impactos sobre as sociedades humanas.

O espírito do nosso tempo é produto de uma espiral em que o realismo opressivo e o conservadorismo militante se reforçam mutuamente. Às já muito comentadas regressões nos direitos conquistados, junta-se uma aura de ausência de possibilidades que tem vindo a assombrar-nos de forma especialmente aguda depois da derrota dos movimentos contestatários antiglobalização e anti-austeridade. O célebre "não há alternativa" penetrou todas as esferas da vida social e política, atirando-nos para um estado de desesperança que impede qualquer rasgo de imaginação.

O apagão da passada segunda-feira foi uma manifestação exemplar desse espírito sorumbático. Não quanto às reações das pessoas – que foram tão-só humanas, com os seus medos e as suas aspirações –, mas quanto aos contornos que assumiu o debate público subsequente. Era expectável que, aproveitando tal oportunidade de ouro, vozes se levantassem para atacar as políticas "verdes" de "transição energética". Conforme esperado, rapidamente todas as armas se apontaram à alegada dependência de energias renováveis. E neste quadro não podiam faltar, claro está, as clamações pelo encerramento das centrais termoelétricas a carvão. Portanto, o que surpreendeu não foi o eco dos velhos do restelo, que há décadas aguardavam esta oportunidade, mas a incapacidade que permeia todos os cantos da esfera pública para questionar esse discurso simplista.

Na realidade, o difundido discurso contra as renováveis está repleto de anacronismos e falácias discursivas. Desde logo, a sugestão de que deveríamos retomar o funcionamento de centrais a carvão e/ou aumentar a quota de energia fóssil para assegurar a segurança do sistema é de uma ignorância perigosa. A comunidade científica tem alertado, há décadas, para o passo acelerado a que nos encaminhamos para o colapso do sistema climático e para os respetivos impactos sobre as sociedades humanas. Uma das consequências desse cenário de instabilidade planetária é a multiplicação e agudização dos fenómenos climáticos extremos, desde ondas de calor até tempestades – umas e outras já visivelmente mais recorrentes na Península Ibérica. Ora, além das tremendas perdas humanas e materiais diretas, este tipo de fenómenos representa uma ameaça séria ao funcionamento regular dos sistemas energéticos. Para isso mesmo têm alterado os sucessivos relatórios do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, bem como centenas de estudos científicos. É, portanto, não apenas paradoxal, mas sobretudo perigoso, apresentar como solução para o problema da segurança do sistema energético nacional o agravamento de uma das principais causas futuras desse problema. É um discurso simplista, ignorante e, pior que tudo, de vistas tristemente curtas. Esta narrativa pervasiva, segundo a qual para resolver uma parte dos nossos problemas coletivos temos de agravar outra parte, não é aceitável. Trata-se de uma efabulação da escassez, que nos leva a crer que só existem más alternativas, cabendo-nos escolher o mal menor.

A desconstrução desta apologia do retrocesso exige notar as falácias em que assenta. As vozes que se têm feito ouvir a invocar a dependência das renováveis e o encerramento das centrais a carvão sustentam o seu raciocínio na alegada relação de causalidade entre a incorporação de renováveis e a maior fragilidade do sistema energético. Ora, sucede que as tecnologias que permitem colmatar o problema da inércia associado às renováveis existem e estão a ser implementadas com sucesso em vários países da Europa, como a Alemanha e o Reino Unido. Tais tecnologias não foram introduzidas nos sistemas português e espanhol, não porque não existem, mas por opção dos operadores. O escrutínio público deveria estar a dirigir-se exatamente a essa opção, em lugar de alinhar na inventiva caça às bruxas montada contras renováveis. Esse escrutínio não pode prescindir, como é evidente, de considerar os impactos que a privatização do setor energético teve em matéria de decisões de investimento. Apesar de apresentar sistematicamente lucros obscenos, o setor parece sofrer de desinvestimento infraestrutural. Este é o resultado natural de deixar a tomada de decisões sobre interesses públicos essenciais nas mãos de entidades cujo objetivo primordial é aumentar a taxa de lucro – o investimento na modernização do sistema energético ficará sempre subalternizado em relação à distribuição de dividendos pelos acionistas.

Além da falta de investimento, é ainda mais curioso notar a ausência de discussão em torno da (des)centralização do sistema elétrico. O nível de centralização atual do sistema é tal que uma única falha é capaz de fazer colapsar todo o sistema. Embora, evidentemente, algum nível de centralização do sistema energético seja imprescindível, é imperativo discutir alternativas de desenho e organização que incluam certo grau de autonomia para redes locais e comunidades residenciais. A distribuição da capacidade de arranque poderá evitar cenários, como o vivido, de apagão total, bem como reduzir o tempo necessário para restabelecer o funcionamento. O autoconsumo coletivo e as comunidades de energia são figuras jurídicas que já existem em Portugal, com potencial para se afirmarem como alternativas descentralizadas de produção de energia. Todavia, estas alternativas encontram-se hoje afogadas numa burocracia quase impenetrável e estão, na maioria dos casos, ligadas à rede, da qual dependem para funcionar. Também neste domínio, todavia, existem alternativas por implementar: a ligação dos painéis solares a baterias garantiria que os sistemas comunitários continuariam a funcionar em caso de colapso do sistema nacional.

Perante problemas sem precedentes, não podemos continuar reféns do mal menor. Contra o "fim da história" convertido em tacanhez apática impõe-se a ousadia. Merecemos um sistema energético descentralizado, resiliente e democrático, que sirva as pessoas e não os interesses de uma elite estrangeira.

Artigo publicado em Sabado a 4 de maio de 2025

Maria J. Paixão
Sobre o/a autor(a)

Maria J. Paixão

Assistente Convidada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Investigadora na área do Direito do Clima. Ativista pela Justiça Climática junto de vários movimentos sociais
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