O bastião transmontano contra o sacrifício da vida

porMaria J. Paixão

23 de janeiro 2025 - 17:08
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Precisamente pela violência que representam, as servidões administrativas só podem ser constituídas quando o interesse público o justificar. Ora, para comunidade local, e para todos os que se têm solidarizado com a sua luta, o projeto mineiro é a antítese do interesse público.

No mesmo dia em que a Associação Povo e Natureza do Barroso e a Associação Unidos em Defesa de Covas do Barroso foram ouvidas na Comissão de Ambiente e Energia da Assembleia da República, tomaram conhecimento de que havia sido constituída, pela Secretária de Estado da Energia, uma servidão administrativa que permite à empresa Savannah Resources aceder a terrenos privados e baldios para avançar com o projeto de exploração de lítio na pretensa Mina do Barroso.

As servidões administrativas permitem às autoridades públicas impor aos particulares encargos sobre os seus terrenos, em nome do interesse público. Neste caso, segundo o Despacho que havia sido proferido a 6 de dezembro, os proprietários ou compartes ficam obrigados a permitir o acesso e ocupação dos seus terrenos pela Savannah, com o objetivo de viabilizar o início dos trabalhos de sondagem e prospeção.

Escassos dias depois da publicação do Despacho, a GNR de Boticas surpreendeu a população, informando-a da pretensão da empresa de entrar nos terrenos brevemente. A comunidade local, e toda a extensa rede de solidariedade que se tem formado em defesa da região, receberam a notícia com estupefação e revolta. Esta é mais uma etapa nos últimos longos 7 anos de luta e resistência das gentes do Barroso. É uma etapa especialmente violenta, uma vez que existe agora um ato jurídico que suporta a pretensão da Savannah de ocupar terrenos que permanecem da comunidade (e que, portanto, não integram a concessão detida pela empresa), muitos dos quais são imprescindíveis à atividade agropecuária que serve de base de subsistência aos respetivos proprietários.

É importante notar que, precisamente pela violência que representam, as servidões administrativas só podem ser constituídas quando o interesse público o justificar. Ora, para comunidade local, e para todos os que se têm solidarizado com a sua luta, o projeto mineiro é a antítese do interesse público. Ao invés, é um projeto de sacrifício da vida, atentatório de bens coletivos como a água e os solos. A região do Barroso é um dos últimos bastiões da vivência harmoniosa entre as pessoas e a terra. Nas serras barrosãs, os conceitos de comunidade e equilíbrio ecológico são mais do que meros lugares-comuns, antes sendo o quotidiano dos que ali habitam. Prova viva disso é a resistência permanente que as suas gentes têm protagonizado nos últimos anos contra o ataque avassalador de uma poderosa empresa estrangeira. No Barroso encontramos o último reduto de uma cultura e de um modo de vida que corre o risco de desaparecer, asfixiados pelos entusiasmos extrativistas de agentes, políticos e corporativos, que se servem da narrativa da "transição energética" para satisfazer interesses económicos.

A região do Barroso foi declarada Património Agrícola Mundial em 2018, sendo o primeiro sítio a ser designado Sistema Importante do Património Agrícola Mundial em Portugal. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura reconhece, portanto, a riqueza socioecológica singular da região, reconhecendo-a como um sistema agrícola vivo, em que a comunidade humana vive numa relação de reciprocidade com o território, a paisagem cultural e agrícola e o ambiente. Todavia, nem este reconhecimento tem sido suficiente para afastar a investida voraz da indústria mineira.

O que se tem passado no Barroso é paradigmático da questão decisiva com que nos confrontaremos por toda a parte. Sendo indubitável a urgência da transição energética, tendo em conta o agravamento acelerado da emergência climática, importa definir o caminho que pretendemos traçar nessa direção. A alternativa de "esverdear" o atual modelo energético-económico, estruturalmente desligado do bem-estar social e ecológico, só pode culminar num cenário como aquele para que têm vindo a alertar as gentes do Barroso: águas e solos contaminados, destruturação da comunidade e destruição dos ecossistemas que suportam a vida, privando as pessoas das mais elementares condições de dignidade. Não é possível manter o mesmo modelo intensivo alimentado a lucros em perpétuo crescimento e preservar a integridade socioecológica. É possível, porventura, esverdeá-lo, mas atentando, pelo caminho, contra a vida, humana e não humana. A permanente expansão energética exigirá o permanente esventramento de novas zonas de sacrífico, se não for para extrair combustíveis fósseis, será para extrair minerais para produção de baterias elétricas.

No entanto, esta não é a única via disponível. É precisamente para isso que tem vindo a apontar a luta barrosã. Desmistificando essa retórica que, ironicamente, condena a natureza e as pessoas em nome de uma transição supostamente em prol da natureza e das pessoas, a resistência que se tem desenrolado no Barroso pretende abrir o debate mais urgente do nosso tempo: que futuro queremos construir?

Os desafios são inúmeros e árduos, ninguém o nega. Mas é exatamente por isso que, mais do nunca, são cruciais dinâmicas comunitárias e democráticas, de discussão aberta, informada e colaborativa. Diametralmente oposto tem sido o tratamento recebido pela população do Barroso, afastada para as margens dos processos decisórios, muitas vezes surpreendida com decisões já tomadas e outras tantas ignorada nas suas legítimas reivindicações. A comunidade tem enfrentado um massivo muro de prepotência e arrogância, ao que acresce o implacável assédio da Savannah Resources, que tem mobilizando as mais variadas táticas para amedrontar e reprimir. O modo como a servidão administrativa foi constituída e comunicada à população (pela GNR) e a pressa em a executar, são mais uma manifestação disso.

Temos tudo a aprender com o Barroso e as suas gentes. Sobre comunidade e integridade. Sobre resistência e conexão com a terra. Sobre o que significa, verdadeiramente, a luta pela vida. E sobre que tipo de democracia, genuína e emancipatória, podemos construir.

Artigo publicado em Sabado a 15 de dezembro de 2024

Maria J. Paixão
Sobre o/a autor(a)

Maria J. Paixão

Assistente Convidada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Investigadora na área do Direito do Clima. Ativista pela Justiça Climática junto de vários movimentos sociais
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