O pôr-do-sol no império em que o sol nunca se punha

porMaria J. Paixão

16 de março 2025 - 21:06
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Além da re-militarização do continente, a Comissão Europeia desencadeou também um processo obscuro de reversão da legislação climático-ambiental vigente.

Num tempo em que tanto se fala de identidades, é curioso notar que a análise se restringe quase sempre ao plano micro, do indivíduo e dos grupos sociais. Ora, o conceito é, porventura, muito mais interessante quando aplicado ao plano macro: como se constrói a identidade nacional? E a identidade "civilizacional"? No caso do continente europeu, e nos tempos que correm, é particularmente instigante a questão de saber como se contruiu e constrói hoje a identidade europeia.

O paulatino desmantelamento do Império Britânico no pós-Segunda Guerra Mundial lançou a Europa na busca por uma identidade própria que lhe permitisse, de algum modo, evitar a capitulação total à hegemonia política, económica e cultural da então emergente potência global – os EUA. Assombrada pelo espectro soviético a leste e procurando gerir o clientelismo vassalo imposto pelos ventos que sopravam de oeste, a Europa do pós-guerra (re)constrói-se em torno do conceito de Estado Social. O modelo social-democrata que se afirmou (sob formas diversas) nos vários Estados da Europa ocidental tornou-se um elemento absolutamente essencial da identidade europeia, emparelhado com a sacralidade da paz.

A "Europa social" assumiu-se, portanto, como híbrido, procurando constituir uma alternativa ao capitalismo laissez-faireestadunidense, por um lado, e ao socialismo real soviético, por outro. Dada essa sua localização ideológica, não é surpreendente que o fim da Guerra Fria tenha desencadeado um processo de esmorecimento do ideário social-democrata na Europa, criando as condições para a emergência do thatcherismo e a afirmação definitiva do neoliberalismo. Esse processo, que se vem desenrolando há quatro décadas, parece conhecer agora o seu ato final. Depois da privatização e depauperização dos serviços públicos que os vários Estados têm levado a cabo desde os anos noventa, os últimos redutos do projeto europeu do pós-guerra são agora desmantelados.

Os últimos meses têm demonstrado de forma quase caricatural a crise de identidade atravessada pela Europa, particularmente manifestada nas ações dos mais altos representantes da UE. Confrontada com um mundo cada vez mais multipolar e com o reposicionamento das grandes potências, a Europa vê-se a braços com a sua própria insignificância no plano geopolítico internacional. Numa sucessão de tristes tentativas de manter a sua relevância e de preservar a coesão de alianças em clara deterioração, os dirigentes europeus tentam agradar a gregos e troianos, enquanto despem o projeto europeu da sua essência.

Este processo de desmantelamento dos últimos blocos da identidade social europeia tem decorrido sob múltiplos véus, o último do qual consiste na narrativa em torno do rearmamento europeu. O Plano ‘Rearmar a Europa’, apresentado por von der Leyen, prevê a mobilização de até 800 mil milhões de euros para financiar o rearmamento dos Estados membros. A implementação deste tipo de pacote de investimento maciço implicará a ativação da cláusula de salvaguarda nacional do Pacto de Estabilidade e Crescimento, ficando aquele valor fora dos cálculos relativos aos limites do défice e da dívida públicas. Como bem se compreende, a longevidade do Estado Social europeu (ainda que já muito debilitado nas últimas décadas) teve como condição basilar a política de paz, que permitiu aos Estados manter níveis de despesa militar baixos e redirecionar recursos para os setores sociais. Esta tem sido, aliás, uma disputa histórica entre os dois lados do Atlântico Norte: enquanto os Estados europeus denunciavam a ligação entre o investimento avassalador no complexo militar-industrial estadunidense e as deploráveis condições dos serviços básicos na maior potência mundial, os EUA criticavam a postura de free rider dos Estados europeus, que, gozando da proteção militar americana, podiam "dar-se ao luxo" de investir nos setores sociais.

Além da re-militarização do continente, a Comissão Europeia desencadeou também um processo obscuro de reversão da legislação climático-ambiental vigente. Alegando a necessidade de "simplificação" da regulação ambiental para promover a competitividade da indústria europeia no quadro da guerra comercial em curso, a Comissão tem operado alterações legislativas que vão muito além de qualquer simplificação, transformando profundamente os regimes vigentes.

O que é especialmente interessante nestas e outras iniciativas similares é o facto de estarem a ser conduzidas pela Comissão Europeia, o órgão da UE cuja legitimidade democrática é a mais questionável. À semelhança do que sucedeu durante o período da crise 2008-2010, em que as políticas de austeridade foram impostas aos povos europeus, também agora assistimos passivamente a uma viragem brutal na política europeia, sem termos sido chamados a pronunciar-nos sobre isso. Este é, porventura, o sinal mais agudo da obscuridão dos tempos que se avizinham: a erosão da própria democracia por uma tecnocracia sem rumo.

A crise de identidade da Europa do pós-guerra não pode, por isso, ser superada sem que os povos europeus se confrontem seriamente com a questão democrática. Dirigentes europeus como von der Leyen parecem preparados para desmantelar os últimos resquícios do projeto social europeu sem terem recebido qualquer mandato popular nesse sentido. O ataque à regulação climático-ambiental é paradigmático: medidas que foram negociadas palavra a palavra durante meses (por vezes, anos) por deputados eleitos, são agora radicalmente alteradas, em poucos dias, por pessoas sem legitimidade democrática. E o mesmo se pode dizer sobre o plano de rearmamento, que mesmo tendo sido aprovado pelos dirigentes nacionais, não estava, de todo, no horizonte quando tais representantes foram eleitos. A derradeira questão dos próximos tempos será, portanto, a de saber se os povos europeus anuirão à emergência de uma Europa pós-democrática e pós-social.

Artigo publicado em Sabado a 09 de março de 2025

Maria J. Paixão
Sobre o/a autor(a)

Maria J. Paixão

Assistente Convidada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Investigadora na área do Direito do Clima. Ativista pela Justiça Climática junto de vários movimentos sociais
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