Como a maior parte das obras de John Steinbeck, As Vinhas da Ira é um murro no estômago embrulhado num realismo que retrata o desespero e a crise na América durante a Grande Depressão. A história de Tom Joad já a li há quase uma década, mas a mestria do autor fez com que essa memória me acompanhasse entretanto, e admito que a ela recorri no balanço das eleições legislativas de 2025.
Da tragédia da família Joad poderiam tirar-se muitas histórias com paralelos hoje. Desde a ruína do negócio agrícola familiar devido a fenómenos climáticos extremos (mas previsíveis na área que é conhecida como Dustbowl, literalmente bacia de poeira), à penhora da quinta pelo banco, que faz parte do imaginário cultural do Midwest estadunidense. Ou talvez à peregrinação que a família faz até à Califórnia em busca de trabalho, para descobrir que é a “entrada catorze mil do dia” naquele Estado, como cantava o pai do folk americano, Woodie Guthrie.
Da pobreza extrema, da fome e das taxas altíssimas de desemprego que tornavam a jorna numa realidade precária e desgastante para os operários fabris e agrícolas, não podemos tirar as maiores ilações para a Europa do século XXI pelas melhores razões.
Mas há aquela frase que dá nome ao livro e que não deixa de caracterizar o ressentimento que a desigualdade, a impotência e a anomia social fazem crescer no seio da principal contradição do capitalismo. “Na alma do povo, as vinhas da ira estão a crescer e a ficar pesadas, pesadas para a vindima”, escreveu.
Não foram as eleições de 18 de maio uma primeira vindima? A extrema-direita ultrapassa o Partido Socialista em número de deputados para se afirmar como principal rosto da oposição. O ressentimento não foi o Chega que o criou sozinho. Canalizou-o para o tema da imigração e soube certamente desdobrá-lo pelos temas mais diversos do dia-a-dia de quem trabalha em Portugal. Tornou-o quase ubíquo. Mas a desigualdade, a impotência, e uma crescente anomia social, sobretudo entre os homens mais novos, já cá estavam.
Curiosamente, quando a situação de recessão global criou condições em tudo mais semelhantes às da família Joad (desemprego alto, precariedade gritante, pobreza generalizada e até a queda de alguns bancos), foi a esquerda que conseguiu canalizar o ressentimento para uma alternativa que mudasse as coisas.
Agora, o caldo é outro. Crescimento económico com crescente desigualdade económica também. Crise na habitação, falência dos serviços públicos, na saúde, na educação. As salvaguardas sociais de quem trabalha em Portugal entram em chamas enquanto a economia cresce, e a extrema-direita aproveita a entrada de imigrantes para ter um bode expiatório. Não há um futuro melhor no horizonte.
Esse projeto foi construído na alternância do centro, mas em particular pelo Partido Socialista de António Costa. Desde 2019, insistiu em governar por pensos rápidos, que muitas vezes fizeram mais mal do que bem. Apoios extraordinários na habitação ajudaram a fazer subir o preço das casas e das rendas. A direção executiva do SNS veio adicionar à confusão em vez de resolver problemas. As negociações com os professores saíram sempre aquém.
As vinhas da ira cresceram e continuarão a crescer no novo mandato da Aliança PSD/CDS. Tenho a convicção de que, seguindo os passos de países como a França ou a Inglaterra, o crescimento da extrema-direita levará à derrocada de um dos dois partidos do centro. Se Montenegro governar durante quatro anos com a mão dada ao Partido Socialista, é o último que definha. Se entretanto colapsa com o caso Spinumviva enquanto as hostes sociais-democratas estão de fileiras cerradas, pode arrastar o partido consigo.
De qualquer das formas, por muita política anti-imigração que aplique ou por muito IRS Jovem que ofereça, não vai estancar o crescimento do ressentimento. Mesmo que incorpore a agenda da extrema-direita, como já começou a fazer, isso não significa que o PSD tenha mais sucesso. Não o terá enquanto não criar a perspetiva de um melhor futuro.
Isso constrói-se com política de ressentimento? A tática do ressentimento dava um ensaio, mas também me dá a oportunidade de voltar a Tom Joad, porque gosto particularmente do discurso que faz à sua mãe quando decide tornar-se um ‘herói da classe trabalhadora’: “Estarei no escuro – em todo o lado. Para onde conseguires olhar, onde houver uma luta para que as pessoas com fome possam comer, lá estarei. Onde houver um polícia a bater numa pessoa, lá estarei. Estarei na forma como os homens gritam quando estão chateados. Estarei na forma como os miúdos riem quando têm fome e sabem que o jantar está pronto, e quando estiverem a comer a comida que criaram e a viver nas casas que construiram – lá estarei também”.
Desse discurso serviu-se Bruce Springsteen para falar de uma outra América em crise. E acrescentou: “Onde houver alguém a lutar por um lugar para estar, ou um trabalho decente ou um ombro onde se encostar, onde qualquer pessoa lutar para ser livre, olha-lhe nos olhos e ver-me-ás”.
O solitário cantautor procurava o fantasma de Tom Joad junto da fogueira. Nós procuramo-lo na greve dos estivadores em Sines e no piquete dos vigilantes da Câmara Municipal de Lisboa. Nas concentrações dos trabalhadores dos bares da CP, nas manifestações pela Palestina, nos piquetes contra despejos, nas associações, cooperativas e coletividades. Longe do ódio a quem trabalha e canalizando o ressentimento apenas contra a contradição de um sistema que não cria exploradores sem criar explorados. Aí encontraremos sempre o nosso Tom Joad.
