A solidez do vento

porMaria J. Paixão

07 de novembro 2024 - 14:44
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Se as pessoas se preocupam crescentemente com a emergência ecológica que veem desenrolar-se à sua volta e ameaçar as suas vidas, aqueles que procuram o seu favor não podem deixar de as tranquilizar apresentado o seu produto como "verde", "sustentável", "neutro em carbono", etc.

O governo aprovou, recentemente, um novo conjunto de medidas para a mobilidade, denominado "Pacote de Mobilidade Verde". De acordo com a informação oficial, as medidas apresentadas refletem «o compromisso do país com uma mobilidade segura, integrada, inteligente e sustentável, alinhada com as metas de descarbonização e modernização do setor dos transportes».

Um dos mais nocivos efeitos que a popularização da causa climática gerou foi, precisamente, esta tendência para a o uso da linguagem como um fim em si mesma. Para quem genuinamente se interessa pela causa, não é má política pessoal desconfiar à partida de tudo quanto venha adjetivado de "verde". Termos como "descarbonização" e, sobretudo, "modernização" devem também merecer um especial espírito inquisitivo e crítico. Todas estas palavras, de tanto que foram usadas até à exaustão pela classe política e corporativa, hoje quase não são mais do que meros lugares-comuns, banais e tendencialmente vazias de significado. Num tempo em que tudo é um produto, saber vender é essencial. Por isso, quer se trate de políticas públicas ou de ativos financeiros, a apresentação do "produto" ao público não pode deixar de interpelar as suas necessidades, desejos e preocupações.

Se as pessoas se preocupam crescentemente com a emergência ecológica que veem desenrolar-se à sua volta e ameaçar as suas vidas, aqueles que procuram o seu favor não podem deixar de as tranquilizar apresentado o seu produto como "verde", "sustentável", "neutro em carbono", etc. No ensaio de 1946 ‘A política e a língua inglesa’, Orwell já nos alertava para a trajetória decadente que a linguagem política tomava, insistindo em "dar aparência de solidez ao vento". A comunicação da política pública no séc. XXI transformou-se, definitivamente, nessa versão degenerada – palavras sonantes obscurecem, as mais das vezes, a falta de conteúdo.

O abuso dos clichés e dos conceitos carregados de bagagem técnica e científica no campo do ambiente e do clima é especialmente problemático por vários motivos. Um deles é a transformação da questão num debate tecnocrático que ofusca as origens sociais, económicas e políticas do problema.

Veja-se o tópico dos transportes. Mais do que "descarbonizar" ou "modernizar" o setor, é imperativo repensar o modelo de transporte existente e construir uma alternativa que sirva efetivamente as pessoas. A verdadeira revolução que precisa de ocorrer no setor dos transportes é a superação do modelo hiper-individualista que, além de ser um atentado climático, suga qualidade de vida e bem-estar às pessoas. Antes de falarmos de digitalização ou eletrificação, precisamos de nos perguntar: Porque é que somos coletivamente forçados a utilizar o transporte individual? Porque é que as nossas cidades não são espaços seguros para nos movermos a pé ou de bicicleta? Porque é que não conseguimos habitar os centros das cidades, de modo a reduzir as deslocações de transporte? Porque é que quem vive nas regiões periféricas do país se vê constrangido fazer deslocações excessivas aos grandes centros urbanos para aceder a serviços básicos e oferta de emprego?

Em suma, porque é que o território e a vida social estão ordenados em prejuízo do bem-estar das pessoas e a favor da rodovia, do turismo e da aglomeração das atividades produtivas nas metrópoles?

O pacto apresentado pelo Governo inclui medidas interessantes. Seria hipócrita afirmar o contrário. O ‘Passe Ferroviário Verde’ é, porventura, a principal dessas medidas. Tratando-se, pura e simplesmente, de um passe que dá acesso a serviços ferroviários regionais, inter-regionais e urbanos, a sua denominação como passe "verde" é desnecessária e reconduz-se, precisamente, ao tipo de discurso que acima criticávamos. Não obstante, é uma medida interessante da perspetiva da acessibilidade económica do transporte ferroviário, sobretudo para quem se desloca com regularidade entre algumas regiões do país.

No entanto, e mais uma vez, fica por resolver a questão de base: as pessoas não podem deslocar-se de comboio se os comboios não existirem. Em Portugal, se queremos realmente falar de mobilidade, temos de pôr de lado os chavões e começar pelo básico. Os portugueses não utilizam mais o transporte coletivo porque ele não existe. Certamente todos preferiríamos cidades com ar limpo e espaços para passear em segurança, viajar entre as várias regiões do país com as comodidades do comboio e sem os custos e desconforto do automóvel, ter todos os serviços essenciais a uma distância percorrível a pé e ir trabalhar ou estudar todos os dias sem ter de perder horas no trânsito. Esta transição não é apenas – nem principalmente – uma transição "verde", que possa ser concretizada por uns quantos técnicos isolados nos seus gabinetes em Lisboa. É uma transição de bem-estar, que deve ser feita para e pelas pessoas.

Medidas como as apresentadas pelo Governo só poderão produzir efeitos realmente impactantes quando, a montante, se transformar o modo como o setor está organizado. A ferrovia não chega à metade interior do país. E sendo certo que há regiões onde não poderá chegar, pelas suas caraterísticas naturais, é preciso implementar soluções alternativas de transporte coletivo que façam a ligação final. A regularidade dos comboios é risível. Mesmo em zonas do país em que os comboios existentes circulam quase sempre cheios, as ligações são poucas e demoradas. A quase inexistência de comboios noturnos internos e de ligações transnacionais no séc. XXI é uma vergonha. Por fim, ninguém optará pelo transporte ferroviário enquanto este for mais lento, menos cómodo e menos pontual do que as alternativas. Impõe-se, por isso, atender ao estado de degradação do material circulante e da própria ferrovia.

No final do dia, portanto, trata-se muito menos de chavões de sustentabilidade, e muito mais de resolver os problemas práticos das pessoas.

Artigo publicado em Sabado a 20 de outubro de 2024

Maria J. Paixão
Sobre o/a autor(a)

Maria J. Paixão

Assistente Convidada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Investigadora na área do Direito do Clima. Ativista pela Justiça Climática junto de vários movimentos sociais
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