Trabalho XXI – relações laborais e negociação coletiva: dinamizar ou implodir?

porMaria da Paz Campos Lima

30 de setembro 2025 - 14:01
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É imperativa a unidade das centrais sindicais e de todos os sindicatos e a ação de mobilização coletiva sindical e cidadã para travar este projeto. Por todos os meios, incluindo a greve geral!

No ano em que celebramos os 50 anos da Assembleia Constituinte que consagrou a Constituição da República, fundadora do Estado social e dos direitos liberdades e garantias dos trabalhadores, a coligação de direita PSD/CDS apresentou o anteprojeto de lei da reforma da legislação laboral, intitulado Trabalho XXI.

O anteprojeto, propondo-se adaptar o país à economia do futuro e ultrapassar a “rigidez das instituições do mercado de trabalho” e a “falta de dinâmica da negociação coletiva e de renovação das convenções coletivas”, não traz nada de realmente inovador e muito menos de progressista. Retoma inegavelmente a agenda concretizada pelo Governo PSD-PP, liderado por Durão Barroso, logo no princípio do século XXI, com o Código de Trabalho de 2003, agenda que subverteu radicalmente o quadro de regulação das relações coletivas institucionalizado na sequência da Revolução do 25 de Abril de 1974.

Esta subversão consistiu na introdução da caducidade unilateral das convenções coletivas, quando anteriormente se assegurava a sua continuidade ou mudança por decisão conjunta das partes signatárias; e na reversão do princípio do tratamento mais favorável permitindo às convenções afastar normas legais mais benéficas para os trabalhadores. Essas mudanças contranatura minaram as bases mínimas de algum equilíbrio nas relações de poder em sede de negociação coletiva, em desfavor dos sindicatos e enfraqueceram a capacidade de renovação dos conteúdos das convenções coletivas num sentido favorável aos trabalhadores. Por outro lado, as condições de mobilização coletiva – suporte crucial do poder de negociação sindical – foram sofrendo uma erosão crescente, por via da precarização dos vínculos laborais, da terceirização e mais recentemente de deslaboralização/uberização.

O ímpeto dinamizador visionário da direita política ressurgiu à sombra da troika e “para além da troika”, como o Governo PSD/CDS liderado por Passos Coelho perto de uma década mais tarde. Agora, à beira de entrar no segundo quartel do século XXI, o anteprojeto procura, não só, livrar-se de praticamente quase todas as medidas entretanto implementadas que, utilizando a expressão do Prof. Leal Amado, “despioraram” o Código do Trabalho, como servir receitas requentadas, enquanto as novidades conjugam o liberalismo selvagem do sec. XIX com a economia digital.

Com efeito, o anteprojeto visa alterar substancialmente para muito pior o regime de negociação coletiva do Código do Trabalho de 2009, quer quanto à aplicação do princípio do tratamento mais favorável, quer quanto às normas relativas à caducidade das convenções coletivas.

Na versão original do Código do Trabalho de 2009, o Governo PS, recusando repor integralmente o princípio do tratamento mais favorável, optou pela sua aplicação seletiva a uma lista de matérias-chaves das relações laborais. Mais recentemente, acrescentou-se a esta lista o pagamento do trabalho suplementar (Lei 93/2019) e o teletrabalho (Lei 83/2021), matérias que o anteprojeto Trabalho XXI, orientado no sentido oposto, se propõe remover. Abrem-se assim as portas para aumentar a pressão patronal no sentido de baixar o pagamento do trabalho suplementar e para reduzir as proteções do regime legal de teletrabalho em sede de negociação coletiva.

O anteprojeto estabelece também que vários aspetos do regime de trabalho intermitente (não abrangido pelo tratamento mais favorável) podem ser alterados por convenção coletiva. E revoga a medida introduzida pela Lei 13/2023, segundo a qual, nas situações de outsourcing, se aplica a convenção coletiva mais favorável aos trabalhadores subcontratados. Por outro lado, reintroduz o banco de horas individual, revogado pela legislação de 2019, contornando assim as convenções coletivas que não admitem bancos de horas.

Por outro lado, as prerrogativas patronais são reforçadas, atribuindo-se-lhes competências na extensão de convenções coletivas nas empresas, no caso em que abrangem metade dos seus trabalhadores, salvo oposição expressa por escrito do trabalhador não sindicalizado ou de associação sindical interessada relativamente aos seus filiados. (Artigo 497.º Aplicação ao nível empresarial).

No capítulo da vigência das convenções coletivas a terminologia “inovadora” não engana: “A convenção coletiva pode ser celebrada com termo certo ou por tempo indeterminado” (Artigo 499). Mas não há garantias de continuidade – porque (…) se a convenção coletiva for celebrada por tempo indeterminado, a denúncia pode ser feita a qualquer momento (Artigo 500).

Nesta linha de implosão, o anteprojeto revoga as disposições introduzidas pela Lei 13/2023 (Agenda do Trabalho Digno), eliminado a arbitragem para apreciação da denúncia de convenção coletiva (Artigo 500-A) e a arbitragem para a suspensão do período de sobrevigência e mediação (Artigo 501-A). Deste modo, retira quaisquer travões à caducidade unilateral, abrindo caminho para o que o João Leal Amado designou como a “autoestrada que termina num precipício. Um caminho concretizado desde 2003, interrompido em partes do percurso, suspendido até por legislação temporária durante a pandemia travando a caducidade unilateral, que este anteprojeto acelera a toda a velocidade. Um caminho que leva tudo à frente, limitando a ação sindical nas empresas sem trabalhadores sindicalizados. E que introduz novas limitações ao direito à greve – limitando por isso também os recursos de poder sindical em sede de negociação coletiva.

Finalmente, o anteprojeto acentua a precariedade dos vínculos laborais e facilita os despedimentos com e sem justa causa, reduzindo a proteção dos trabalhadores. Medidas que afetam negativa e profundamente a capacidade reivindicativa dos sindicatos em sede de negociação coletiva e fora dela e as suas capacidades de organização dos trabalhadores.

Ao mesmo tempo, ao tornar inoperacional a presunção de laboralidade introduzida pela Lei 13/2023, o anteprojeto reduzirá drasticamente o universo de trabalhadores das plataformas potencialmente abrangidos por um contrato de trabalho, e ao modificar o critério de dependência económica restringirá o universo de trabalhadores independentes em situação de dependência económica apenas aos que obtenham de uma única entidade pelo menos 80% do seu rendimento anual.

Estas medidas reduzirão a cobertura potencial das convenções coletivas. O que é tanto mais incompreensível quanto o anteprojeto tem a intenção de transcrever para a legislação nacional a diretiva europeia relativa a salários mínimos adequados, a qual inclui a promoção da negociação coletiva e o aumento da cobertura das convenções coletivas.

Dinamização e renovação? Não. Implosão, pura e simples. A ser aprovado, este projeto representará um retrocesso dramático no campo das relações coletivas de trabalho, contrariando o sentido mais profundo dos princípios consagrados no texto constitucional e nas convenções da OIT relativas ao direito de organização e negociação coletiva (Convenção n.º98 de 1949) e à promoção da negociação coletiva no sentido do progresso e justiça social (Convenção n.º 154 de 1983).

Neste contexto, é imperativa a unidade das centrais sindicais e de todos os sindicatos e a ação de mobilização coletiva sindical e cidadã para travar este projeto antilaboral, antissindical e antidemocrático. Por todos os meios, incluindo a greve geral!

Artigo publicado em publico.pt a 19 de setembro de 2025

Maria da Paz Campos Lima
Sobre o/a autor(a)

Maria da Paz Campos Lima

Socióloga, investigadora do ISCTE-IUL
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