Aprofundamento dos mercados de capitais ou a deterioração do Estado Social

porMadalena Figueira

21 de novembro 2024 - 16:36
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Maria Luís Albuquerque foi nomeada Comissária dos Serviços Financeiros. Tem o curriculo ideal para o projecto político que agora se fortalece: aprofundar os mercados de capitais, tornar todos os cidadãos potenciais investidores e desmantelar ainda mais o Estado Social.

Maria Luís Albuquerque foi nomeada Comissária dos Serviços Financeiros e da União da Poupança e Investimento. Esta escolha não é inocente. Tem o currículo ideal para o projecto político que agora se fortalece: aprofundar os mercados de capitais, tornar todos os cidadãos potenciais investidores e desmantelar ainda mais o Estado Social.

Com o renovar do seu mandato, Ursula von der Leyen assume como uma das suas linhas orientadoras a criação da União de Poupanças e Investimentos - novo nome dado à junção da União Bancária e da União dos Mercados de Capitais. A atual necessidade de investimentos massivos serve de pretexto para avançar na integração financeira. Os desdobramentos são múltiplos, mas dois são particularmente relevantes: o reforço do papel financeiro das seguradoras e fundos de pensões, e o retorno da titularização de ativos.

A premissa base deste projecto é a maior integração de investidores de retalho nos mercados de capitais, conseguida através de uma maior oferta de produtos financeiros e a facilitação do seu acesso. Aí surge o papel crucial dos chamados investidores institucionais - os fundos de pensões e as seguradoras.

Nos seus relatórios, Enrico LettaMario Draghi lamentam que poucos países na UE desenvolveram esquemas privados de gestão de pensões e apontam estes países como exemplos-chave por serem os que apresentam os mercados de capitais mais desenvolvidos. Não podendo atuar no âmbito das seguranças sociais nacionais, aconselham a promoção dos produtos privados. Por um lado, através da simplificação e nova tentativa de promoção de um Produto Individual de Reforma Pan-Europeu (o PEPP), e, por outro, através da possível criação e harmonização de benefícios fiscais para esquemas privados.

Já sobre as seguradoras, apesar do recente alívio conseguido, defendem uma nova ronda de redução das exigências de capitais de forma a criar maior disponibilidade de financiamento. As seguradoras são assim estimuladas como modelo de negócio por defeito. O aprofundar destes dois mercados é feito por oposição aos esquemas públicos de gestão de pensões e serviços de saúde tendencialmente gratuitos.

Ao mesmo tempo que se exploram formas de concretizar a intensão expressa de tornar todos os aforradores privados em potenciais investidores nos mercados, procura-se dar maior relevância à banca sombra, ou seja, à teia de agentes pouco ou nada regulados do sistema financeiro.

Volta-se a defender a titularização de ativos - i.e. o reagrupamento de empréstimos, com origens e riscos muito diferentes, de forma a criar novos títulos financeiros comercializáveis. O raciocínio subjacente é que os bancos possam limpar os seus balanços ao venderem ativos indesejáveis, como crédito malparado, a agentes da banca sombra, como fundos abutres. O suposto benefício é duplo: os bancos libertam-se para poder conceder mais crédito (e potencialmente mais barato) e mais ativos financeiros passam a estar disponíveis nos mercados de capitais.

Foi precisamente este mecanismo que esteve na raíz da crise financeira de 2007, tendo sido fortemente regulado na sua sequência. Agora, a Comissão propõe-se a rever a legislação sobre titularização para a promover. O processo ainda está em consulta pública, mas Draghi, por exemplo, propõe ajustar os requisitos prudenciais para ativos titularizados, reduzindo o capital exigido aos bancos.

Apesar de tentar alguma prudência na audição parlamentar, Maria Luís Albuquerque dá a cara por este projecto. Em paralelo à restrição orçamental dos países e ao desmantelamento da proteção colectiva, a UE escolhe ir à boleia dos Estados Unidos e apostar numa maior circulação do capital privado. Passado mais de uma década, parece que as lições aprendidas com a crise financeira foram completamente esquecidas.

Madalena Figueira
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Madalena Figueira

Economista
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