Foi no Brasil que nasceu a minha nova família, e também foi lá que aprendi muito do que sei de política. No Brasil abracei a profissão de jornalista, e lá mantenho muitos amigos. Já me tinham avisado: “Você vai encontrar um país muito diferente”. Tinham razão.
Desapareceu o país dos eternos otimistas
Encontrei um país amargo, tenso, empobrecido. Aquele otimismo esfuziante estampado na cara das pessoas, aquela crença inabalável num futuro melhor, no “Brasil, abençoado por Deus”, por mais desesperada que fosse a vida, esse Brasil da alegria levou um chá de sumiço. Foi substituído pelos olhares um pouco perdidos, por onde (re)passam cenas recentes que ninguém consegue esquecer. “Você não imagina como foi viver a pandemia com um louco negacionista e genocida na Presidência, e no Ministério da Saúde um militar supostamente especialista em logística que enviava para o Amapá o oxigénio que faltava no Amazonas!”
A miséria, que regressou nos anos de Bolsonaro, está presente na orgulhosa avenida Paulista, a vitrine do outrora pujante capitalismo paulista. E isso choca. Nos anos de Temer, eu já fora testemunha do centro da capital de S. Paulo tomado pelos sem abrigo a partir do pôr-do-sol. Mas não encontrara esse fenómeno na Paulista. Agora, lá está: tendas montadas à espera daqueles que a vida empurrou para as ruas, abrigos precários em cima de um dos metros quadrados mais caros da América do Sul.
E cenas chocantes a toda a hora: mulheres a pedir esmola, invariavelmente negras, sentadas ou deitadas no chão com filhos ao colo ou dormindo ao seu lado. Crianças que tinham de estar numa creche ou na escola. Mas os poderes públicos ignoram-nas, é como se nada tivessem a ver com aqueles seres invisíveis. A indiferença e a cegueira. A indiferença é a cegueira. E a cegueira é a normalização da irresponsabilidade do poder público diante da condenação precoce destas crianças à miséria.
Chego ao final da Paulista e entro num centro comercial. Uma cena me aguardava e eu mal pude acreditar no que via: uma mulher, jovem, empurra um carrinho onde está deitado, não um bebé, mas um cãozinho. Dizem-me que se tornaram comuns esses carrinhos, parecidos com os de bebé, mas destinados a poupar do cansaço os lulus de madame. O contraste do cãozinho bem-cheiroso, acabado de sair do petshop, com as crianças deitadas no chão ao lado das mães esmoleres, a poucos metros dali, diz muito sobre o Brasil de hoje.
Candidaturas de classe
Há mais ricos e donos de uma parcela maior da riqueza nacional, e há mais pobres e miseráveis. Os ricos procuram um representante que melhor defenda os seus interesses. E os pobres também. Adivinhem quem são ambos?
Há pobres do lado de Bolsonaro e ricos do lado de Lula? Claro que há. Mas quem deu a vitória a Lula no primeiro turno foram os mais pobres: o candidato do PT obteve 54% dos votos dos que têm renda familiar até 2 salários mínimos (cerca de 475 euros), contra 35% de Bolsonaro; entre os mais jovens, de 16 a 24 anos, Lula ganhou de 52% a 39%; foi o favorito das mulheres, por 50% a 41% e dos que se declaram de cor preta; ganha entre católicos (55% a 38%) e, é claro, Lula foi o escolhido dos bravos nordestinos, por 66% a 28%.
Já Bolsonaro é mais votado entre os que têm rendimento familiar de 2 a 5 mínimos (56% a 44%) e de 5 a 10 mínimos (54% a 46%), os que são brancos (50% a 43%), os evangélicos (62% a 31%) e os da região Sul (54% a 38%). Dados da última sondagem do DataFolha.
A onda se formando, a onda permanece grande
Em 2017, eu e minha companheira pusemos em cima da mesa a hipótese de regressar ao Brasil. Passei de novo sete meses seguidos do outro lado do Atlântico e assisti ao crescimento da onda Bolsonaro. Se a agência do Banco do Brasil estava lotada de clientes nervosos pela demora do atendimento, haveria forçosamente um que comentaria bem alto, para ser ouvido: “Bolsonaro vai vir dar um jeito nisto”. Entre os taxistas, então, era avassalador. E eu brigava com todos. Brigas acesas: “Lula é ladrão? Por causa de um apartamento no qual nunca passou uma noite sequer? Mas e o Bolsonaro, que quando foi eleito deputado não tinha onde cair morto, nem ele nem os filhos, e agora tem um património imobiliário de dezenas de apartamentos e até uma mansão?”
Era inútil, claro. A onda estava em formação e parecia irreversível. Todos sabíamos que iria crescer, a dúvida era até onde chegaria. Uns diziam 15%, outros 20%. Até que Lula foi definitivamente afastado pela Justiça. Haddad recebeu dele o testemunho, à última hora, e fez o melhor que pôde. Mas Bolsonaro, com a facada, ganhou as eleições. Tempestade perfeita.
Como explicar?
De regresso a Portugal, passei meses a refletir, a buscar documentação para procurar alinhavar um texto que pudesse explicar aos meus leitores lusitanos como um país que nos habituámos a admirar pelas suas artes foi cair nas mãos de um grunho? Responder a isto não foi tarefa fácil. O resultado foi um capítulo do livro “Combates contra a extrema-direita”, onde me coube a tarefa de explicar a vitória de Bolsonaro. No capítulo “Jair Bolsonaro, a extrema-direita toma o governo do Brasil”, em quase 50 páginas, procurei reunir o resultado de muitas conversas, muitas leituras e as conclusões a que chegara.
Mas confesso que não fiquei contente com o texto, apesar de o considerar um dos meus melhores. Havia um fenómeno específico, muito difícil de identificar e quantificar, mas que era perfeitamente real e concreto: a “saída do armário” dos bolsonaristas. Gente que sempre esteve no seu canto, sem participação política, no máximo uns comentários aqui e outros acolá, de repente acorda e se declara partidária do capitão reformado. E partidária fanática, note-se.
As “saídas do armário”
É gente que habita prédios em que até então era respeitada a exclusividade do uso do “elevador social” para os moradores e o “de serviço” para empregados e empregadas. É gente que odeia Lula porque os fez dar contrato (assinar carteira) às empregadas, acabando com a escravatura doméstica que vigorava em muitos prédios ricos.
É o Brasil dos privilégios, entre eles os dos militares que raramente são abrangidos pelos cortes orçamentais que periodicamente se abatem sobre os funcionários públicos.
Por exemplo: vocês sabiam que, até o ano 2000, a ou as filhas de um militar recebiam a vida inteira uma pensão paga a partir do falecimento deste? Esta pensão por morte, vitalícia para filhas de militares (os filhos recebem-na só até os 24 anos de idade) só foi extinta em 2000, mas mesmo assim com a possibilidade de manter o privilégio se o militar já enquadrado na força até esse ano aceitasse descontar mais 1,5% do seu salário!
Vocês sabiam que há no Brasil praias exclusivas para militares?
Pois é este fenómeno – o surgimento de uma camada da classe média e da burguesia que saiu do armário para defender os privilégios a que julga ter direito por nascimento, e para isso está disposta a apoiar uma ditadura militar se for necessário – que não consegui analisar naquele capítulo. E, no entanto, é uma das chaves para entender a persistência do fenómeno Bolsonaro e do neofascismo.
A outra, e associada a esta, é compreender que o passado esclavagista do Brasil, colónia de Portugal, e do Brasil independente perdura ainda como uma herança maldita de que não consegue livrar-se, justamente porque há uma elite de privilegiados que tudo farão para se manter à tona, seja a que custo for.
Uma estranha campanha
Esperava encontrar uma reta final de campanha com o frenetismo habitual: carros de som forrados de imagens de candidatos a deputado espalhando aos quatro ventos que aquele é o melhor, votem nele; as ruas inundadas de papéis distribuídos por “cabos eleitorais”, as paredes empapeladas de fotografias de candidatos a governador e senador. Enfim, a memória que tinha das campanhas dos anos 80 e 90.
Não foi o que encontrei. O que vi foi uma campanha discreta, com mesinhas de distribuição de propaganda nas esquinas de algumas avenidas e ruas comerciais importantes, convivendo aparentemente sem problemas. As pessoas passavam por elas, aceitavam os papéis se correspondessem ao seu candidato a presidente, mas não punham no peito nenhum autocolante. Guardavam os papéis e prosseguiam o caminho sem nenhuma identificação. Não vi carros particulares exibindo nos vidros propaganda de candidatos, como era habitual noutras campanhas. Só os carros da própria campanha.
Mais: os bolsonaristas arranjaram uma forma de se afirmarem publicamente: afixando ou hasteando nas janelas, no telhado das suas casas, em qualquer lugar bem visível a bandeira do Brasil. Não é preciso dizer mais nada, Bolsonaro, o mesmo homem que bateu continência a John Bolton, Conselheiro de Segurança Nacional de Trump, conseguiu sequestrar para a sua campanha a bandeira do Brasil.
Não vi bandeiras vermelhas afixadas em lugar algum.
Perguntando a amigos, a maior parte disse-me não se sentir confortável andando sozinho na rua com um autocolante de campanha. Um sentimento que eu não recordo jamais ter tido antes. Pois é: mas eu nunca vivi no Brasil uma situação reacionária, uma relação de forças desfavorável. Essa relação pode vir a inverter-se se Lula ganhar as eleições, mas ainda restará retirar à extrema-direita a hegemonia nas ruas, que mantém. E isso pesa.
Uma noite de agonia
Quando chegou a noite eleitoral, a surpresa apanhou-nos a todos, os da esquerda. Antes, a grande discussão não era se Lula vencia, nem por que margem; a expectativa era se Lula levava já na primeira volta ou não. Mas a contagem começou com Bolsonaro liderando largamente. Chegou a abrir dois milhões de votos de vantagem. Eu sabia que esse era o efeito de as cidades menores, dos interiores dos estados, terminarem a contagem primeiro, e é nelas, dependendo dos estados, que Bolsonaro tem mais votos; além disso, a contagem em todo o Nordeste estava atrasada. Eu sabia que a contagem ia virar. Mas estava a demorar!
E entretanto começam a chegar as notícias dos triunfos de bolsonaristas: Damares Alves, a que viu Jesus num pé de goiabeira, eleita senadora no Distrito Federal. No Rio de Janeiro, Cláudio Castro, o vice do governador Witzel, um bolsonarista que sofreu impeachment, eleito logo no primeiro turno, derrotando Marcelo Freixo, do PSB; Eduardo Pazuello, o cúmplice de Bolsonaro em todos os desmandos provocados pelo governo durante a pandemia de Covid-19, eleito deputado com a segunda maior votação do estado do Rio de Janeiro.
Em S. Paulo, Tarcísio de Freitas atropela Fernando Haddad, do PT, e vence o primeiro turno das eleições para governador do estado. Tarcísio é carioca e desconhece de tal maneira o estado para o qual se candidatou que nem tinha ideia de onde ia votar. A sua candidatura foi inventada por Bolsonaro, de cujo governo fez parte, como ministro da Infraestrutura. Teve 42,3% dos votos, contra 35,7% de Haddad. Um desfile de horrores.
“O destino de uma geração inteira”?
Quando a contagem virou para Lula, ouvi gritos de alegria em casas próximas. Tal como quando o Flamengo marca um golo. A apuração já estava cerca de 70% concluída. Foi então que os votos do Nordeste entraram em força. Lula começou a abrir vantagem em relação a Bolsonaro, até chegar aos seis milhões de votos de avanço. Ficou a apenas 1,57% de resolver tudo no primeiro turno. Mas a noite de agonia tinha produzido efeitos.
O erro das sondagens foi flagrante no que diz respeito ao resultado de Bolsonaro: 42,3% foi o resultado real; o Datafolha tinha-lhe dado 36%, a Genial/Quaest 38%, o Ipec 37%. Os três resultados fora da margem de erro.
Esta diferença moralizou as hostes bolsonaristas, que viram confirmadas as suas denúncias de que as sondagens estavam erradas. Além disso, Lula não ganhara à primeira, e o segundo turno é sempre uma nova eleição.
Do lado da candidatura de Lula, os ânimos estavam abalados, de tal forma que foi necessário relembrar que Lula vencera, que seis milhões de votos é muito voto, que não se deve entrar na embriaguês do “Já ganhou!”, mas o “Já perdeu!” tem um efeito ainda mais nocivo.
Apanhámos o avião de volta já em plena campanha do segundo turno. Como não a presenciei, não entra neste texto, que decidi reservar a um testemunho direto.
Só espero que a campanha de Lula não se desloque cada vez mais para o centro, como querem os novos aliados e a imprensa. Aquele que é de esquerda e vira para o centro, acaba não tendo o que defender. Sem propostas claras, o eleitorado não o entende. Vejam o que aconteceu a Marcelo Freixo desde que saiu do Psol, até, já no PSB, pôr o conservador César Maia como seu vice.
“Não serão apenas os próximos quatro anos. Esse segundo turno vai decidir o destino de uma geração inteira”, disse o Valério Arcary, do PSOL, meu velho amigo de há 50 anos. Ele gosta muito de frases dramáticas e esta não escapa a essa regra. Mas creio que tem toda a razão. E eu incluo-me nessa geração.