Por um acaso afortunado, foi descoberto na Torre do Tombo um arquivo que nos remete directamente para o período colonial em Moçambique. Colocado numa prateleira há décadas, despertou a curiosidade de um funcionário. Para quem nunca entrou nos depósitos de um arquivo, pode parecer inexplicável. Não é caso único, acontece um pouco pelos arquivos de todo o mundo, mas serve para nos alertar para a necessidade absoluta de dispor de pessoal qualificado nos arquivos. Como também nas bibliotecas, os técnicos têm de dispor de tempo para observar, pensar, comparar. Um olhar mais atento detectou a diferença. Este é o lado arquivístico.
Segue-se o lado histórico. O que o técnico acabava de identificar corresponde a um bom pedaço da história colonial portuguesa em Moçambique, um pedaço muitíssimo incómodo que revela pormenores sobre a actuação da PIDE DGS e de todos quantos colaboraram com ela e, logo, com o regime fascista. As reportagens feitas pelo Público (sete episódios no suplemento P2 desde o final de Junho) para além de me causarem horror e vergonha, provocam repulsa. Trata-se de relatos abomináveis, retratando sem a menor dúvida uma ignomínia que, admito, ultrapassa tudo quanto poderia imaginar. Tudo espelhado com tanta crueza, é urgente debater.
Não se pode ficar indiferente à revelação de tamanhas atrocidades cometidas contra os guerrilheiros, contra a população civil moçambicana. A questão não fica resolvida pedindo desculpa, aliás, um pedido de desculpas parece uma coisa um pouco frágil e hipócrita. Mas também não se pode deixar de fazer alguma coisa, será muito difícil manter boas relações com Moçambique fazendo de conta de que nada se passou. Aconteceram coisas gravíssimas, os direitos humanos foram espezinhados, a tortura mais bárbara e ignóbil era o pão nosso de cada dia.
Foi a PIDE, foi. A primeira coisa que sabemos é que nem todos os pides foram apanhados depois do 25 de Abril e também sabemos que a justiça foi branda. Portanto, logo aqui há muita matéria para esclarecer, terem ficado impunes até hoje já foi péssimo. Depois também sabemos que a PIDE não actuava sozinha, tinha a sua rede, os seus apoios, aliás há documentos a relatarem as atrocidades que se faziam nas casas particulares quando as instalações não eram suficientes. Chama-se a isso conivência, apontar o dedo aos pides é insuficiente, elementos da sociedade civil colaboraram. Safaram-se todos? Fugiram para os países vizinhos, deram uma volta pela África Austral e rumaram a Portugal? Infiltraram-se na sociedade com pele de cordeirinho, minando o que puderam.
A única reparação possível é a ajuda para sair da extrema pobreza. Nós devemos isso aos Moçambicanos. Querendo eles, sabemos muito bem onde a colaboração é mais urgente. Os distritos do Norte sofrem mais que o resto do país, já no período colonial era a zona mais fustigada pela PIDE, não há meio de terem paz e sossego. Temos mesmo essa obrigação, não há quês. Como os factos agora provam, as nossas histórias estão indissoluvelmente ligadas, quem tem um pouco mais não pode arranjar desculpas para nada fazer. Outras reparações poderão seguir-se, mas vamos às questões urgentes, mostremos que sabemos separar o trigo do joio.
