O avião do qual Marrocos só deixou sair migrantes deportados

porCatarina Martins

24 de fevereiro 2025 - 16:32
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Marrocos quer os recursos naturais do território ocupado: fosfatos, pescas, energia. E as empresas europeias lá estão: dos cimentos às eólicas, do mar aos minérios. A União não condena a ocupação. Aproveita-se dela.

Três membros do Parlamento Europeu eleitos por Portugal, Espanha e Finlândia (eu, Isa Serra e Jussi Sarramo) foram barrados no desembarque em Aaiun. Travaram o desembarque as autoridades de Marrocos, a força que ocupa ilegalmente o Saara Ocidental, um território internacionalmente reconhecido e que tem como legítimo representante a Frente Polisario.

O Saara Ocidental é a última colónia africana. Depois da saída dos espanhóis, foi ocupado pela potência vizinha. Sucessivas resoluções das Nações Unidas e a generalidade da comunidade internacional classificam a ocupação como ilegal. O povo saharaui resiste como pode e espera o prometido referendo de autodeterminação, sob violenta repressão.

Os acordos da União Europeia com Marrocos

Com as rotas do Mediterrâneo cada vez mais perigosas, pessoas migrantes tentam crescentemente a sua sorte pelo Atlântico. Segundo as organizações de direitos humanos, só em 2023 morreram mais de 6 mil pessoas nessas travessias, a grande maioria ao largo das Canárias, sob o olhar das autoridades marroquinas e da Frontex. A política de migração da União Europeia tem as companhias que merece.

Marrocos usa migrantes para pressionar as fronteiras. Quando a Geórgia o faz, a UE denuncia a guerra híbrida. Com Marrocos, faz um acordo que envolve a aceitação cada vez mais explícita da ocupação ilegal do Saara Ocidental. Marrocos quer os recursos naturais do território ocupado: fosfatos, pescas, energia. E as empresas europeias lá estão: dos cimentos às eólicas, do mar aos minérios. A União não condena a ocupação. Aproveita-se dela.

A missão que não aconteceu

Em outubro de 2024, o Tribunal de Justiça da União Europeia declarou que os acordos entre a UE e Marrocos são nulos porque incluem recursos naturais do Saara Ocidental e Marrocos não pode vender o que não é seu. Esta decisão foi uma enorme vitória da Frente Polisario. Foi para verificar o cumprimento dessa sentença que preparámos esta visita.

A missão foi acertada com a Frente Polisario e todas as entidades relevantes foram informadas, incluindo a representação da UE em Marrocos, ainda que os cidadãos da União não precisem de autorização para entrar. Entram regularmente, e em número crescente, para turismo ou negócios.

Tínhamos previstas reuniões com várias organizações, como a CODESA, que monitoriza a exploração dos recursos naturais e violações de direitos humanos; e a MINURSO, a missão das Nações Unidas para o referendo da autodeterminação. Iríamos também ao encontro com familiares de pessoas presas. No Saara Ocidental a presença numa manifestação contra a ocupação pode custar prisão perpétua ou pior. A Frente Polisario conta 34 presos políticos e mais de 500 desaparecidos. Sobretudo jovens, que as famílias não sabem se estão vivos ou mortos.

A viagem da deportação e a chegada a Aaiun

Saímos de Las Palmas num voo da Royal Air Maroc Airlines. No portão de embarque está uma única pessoa. Ficamos a saber que no avião seremos só nós, polícias e pessoas com ordem de deportação. Desde há cerca de 6 meses, há dois novos voos semanais entre Las Palmas e Aaiun. Às terças e quintas saem os “aviões dos deportados”, mas compra-se bilhetes online para os lugares disponíveis. Foi o que fizemos.

Os imigrantes que vão ser deportados embarcam depois de nós, juntamente com os polícias. Há mais polícias do que migrantes e o embarque é surpreendentemente calmo. O avião levanta, depois das normais instruções e avisos. Pela primeira vez, dou-me conta de que ajudar outros passageiros a colocar a máscara de oxigénio inclui quem está manietado. O voo é tranquilo, mas o comandante insiste que está turbulência. Por essa razão, as casas de banho permanecem fechadas e ninguém se pode levantar. Na parte de trás dos bancos, podemos ver joias e perfumes no catálogo do dutty free. São cinquenta minutos de distopia.

Aterramos num aeroporto praticamente deserto. Aproxima-se a polícia marroquina e o pessoal de cabine pede-nos que aguardemos. Vemos as pessoas deportadas a serem desembarcadas. Finalmente, pedem ao eurodeputado Jussi Saramo que se desloque até à porta traseira do avião para receber instruções. Vamos todos. Lá chegados, dois homens que nunca se identificaram nem mostraram qualquer documento dizem-nos que não podemos desembarcar. Somos “personae non gratae”.

Pedimos explicações e um documento oficial. Nunca respondem. Há uma fila de homens à paisana a ladear o avião. E, no cimo das escadas, tapam-nos a passagem. Ficamos mais de uma hora em impasse. Nós recusamos voltar aos lugares e ligamos a representantes diplomáticos da UE e dos nossos países. Não há qualquer solução. Os homens que nunca se identificaram empurram-nos para forçar o fecho das portas do avião. Não sabemos como, mas o piloto tem os nossos cartões de embarque e o nosso nome na lista de passageiros do voo de volta. Os policias espanhóis, dentro do avião, explicam que nada podem fazer. Não percebem como isto pode a acontecer. Sem nunca sair do avião, acabamos por regressar a Las Palmas.

No regresso às Canárias, a Frente Polisario e a reação dos governos

Representantes da Frente Polisario recebem-nos no aeroporto com bandeiras do Saara Ocidental. Agradecem o nosso esforço. Desde 2020 e do acordo de Marrocos com Trump no seu primeiro mandato que a comunidade internacional  os tem ignorado. Todos os esforços são importantes para não permitir que sejam esquecidos.

Os nossos governos garantem que pediram às autoridades marroquinas para nos tratarem com “respeito e dignidade”. O embaixador marroquino em Portugal dirá que queríamos colocar em causa a integridade do território de Marrocos. Nestas declarações, o Saara Ocidental não existe.

Tomamos nessa mesma tarde uma posição pública conjunta. Denunciamos a forma ilegal como travaram o nosso desembarque e queremos posições públicas das instituições europeias. O direito internacional ainda vale?

A nova ordem mundial

Diz-se que Trump está a inaugurar uma nova ordem mundial. Inaugurou o tempo em que explicitamente se negoceia territórios e povos. Tudo tem um preço, valores e leis não existem. Mas este caminho já estava a ser preparado.

Na cumplicidade com o genocídio em Gaza, no financiamento da guerra do Congo, na distribuição dos negócios de reconstrução da Ucrânia, na externalização de fronteiras, o que tem feito a UE? No acordo onde cabe Marrocos, já a Líbia, Turquia, Tunísia e Egito recebiam milhões para deter migrantes com práticas de terror que o jornalismo de investigação tem denunciado, também nas páginas do Público. O offshore de direitos humanos é pago em euros.

Para os saarauis, a ordem internacional com regras nunca existiu. A autodeterminação sempre lhes foi negada, com a cumplicidade de países como os EUA ou a França que juram fidelidade ao Direito Internacional. E, por isso, insistiremos. Não é só a vida deles. É o mundo em que aceitamos viver. Parafraseando Angela Davis, este é o tempo de mudar o que não podemos aceitar.


Artigo publicado no Público a 23 de fevereiro de 2025.

Catarina Martins
Sobre o/a autor(a)

Catarina Martins

Eurodeputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Atriz
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