O que é ser infame

porMaria Luísa Cabral

31 de agosto 2025 - 13:18
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Às vezes não se é feliz nos termos escolhidos para um texto, mas o teor do mesmo pode dissipar dúvidas. O problema só existe se em vez de dissipar, sublinhar.

Esta semana, li na imprensa diária um artigo de pretensa interpretação histórica sobre o 25 de Novembro. Fico sempre de pé atrás, o 25 de Novembro está nos antípodas do 25 de Abril. Mas concedo dar atenção a uma defesa fundamentada nos factos, tão isenta quanto possível, atingindo o meu máximo de flexibilidade. Ora, o dito artigo trazia para a ribalta o 25 de Novembro e eu registei  dois erros, um formal e próprio de ignorante, o outro cheio de raiva.

O erro formal, hipoteticamente suportado por fotografia, morria logo ali. Dizia o texto que os soldados do RALIS tinham feito o juramento de bandeira de punho erguido. Qual punho erguido qual quê! Para que conste, o punho erguido corresponde ao braço erguido na vertical, bem ao alto, com o punho fechado. O que a fotografia documenta é o braço direito esticado para a frente, punho cerrado. Não há punho erguido, é uma questão formal mas o articulista sabe lá o que é um punho erguido! Esse articulista é ignorante.

O segundo erro não é formal, transmite uma tomada de posição perante o 25 de Novembro e faz uma interpretação histórica daqueles acontecimentos muito susceptível de semear a confusão. Diz o articulista que o texto do juramento é infame. Infame, com todas as letras. Fiquei tão confusa que li e reli a afirmação do articulista e o texto do juramento. Aceito que o articulista discorde do texto do juramento, mas daí até o denominar de infame vai uma distância como da Terra à Lua. O articulista sabe o significado de infame?!

Infâmia é o que a PIDE fez em Moçambique aos moçambicanos que apanhava e acusava de serem guerrilheiros ou apoiantes dos guerrilheiros. A isso chama-se infâmia e eu tenho vergonha. Não adianta pedirmos desculpa que “águas passadas não movem moinhos”, mas adiantava ter uma política de maior cooperação com Moçambique, ajudar os moçambicanos a saírem da pobreza em que estão atolados. Isso sim, seria reconhecer por acção que estamos com eles, que podemos proporcionar uma vida melhor a quem no passado tanto explorámos e oprimimos. É tempo de repor a verdade, contribuir para fortalecer estruturas conducentes a uma democracia duradoura. O nosso compromisso com África não se pode limitar à invocação bacoca do passado, um rol de saudosismo. África merece mais, e quando chegam à Europa como migrantes só temos mesmo de os acolher e assegurar que encontrarão aqui trabalho e condições dignas de vida.

Infâmia é dizer, como fazem os partidos do governo, que se o Tribunal Constitucional chumbou a Lei dos Estrangeiros, tant pis, porque vamos mesmo fazer o que temos no programa de governo. C’os diabos, um pouco de decência, algum pudor. Bom, talvez seja melhor este afrontamento directo, sem nada esconder. Os representantes do governo podiam dizer, com maior urbanidade, que iriam analisar a decisão do TC. Nem sabem o que é urbanidade, escaqueiram tudo como quem diz ah, não aprovaram, vão ver! Chama-se a isto ser arruaceiro, em completa sintonia com o Chega, putativo candidato a parceiro governamental. Se eu fosse social-democrata, estaria estupefacta e prestes a dar de frosques. Se a opção é ficar, então, abrem os braços à infâmia.

Estamos muito longe do que se passou no 25 de Novembro, é preciso escolher os adjectivos com cautela, às vezes com pinças, e guardar os pesos-pesados para as grandes causas. Um discurso naquele contexto é, quando muito, revolucionário não infame por mais que discordemos dele.

Maria Luísa Cabral
Sobre o/a autor(a)

Maria Luísa Cabral

Bibliotecária aposentada. Activista do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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