A justiça polaca acaba de condenar 3 médicos pelo homicídio de Izabela. Uma mulher de 30 anos, que morreu por lhe recusarem o aborto que lhe salvaria a vida. Não é a primeira vez que os “pró-vida” matam, e, infelizmente, não será a última. O aborto é um cuidado de saúde e não pode ser recusado. Vale a pena olhar para o que se passa na Polónia.
Em 2021, Izabela morreu de septicemia. Tinha 30 anos e estava grávida de 22 semanas. O feto tinha graves problemas de desenvolvimento, mas, ainda assim, os médicos negaram intervir. Izabela morreu deitada numa cama de hospital, por não receber o cuidado de saúde de que precisava: um aborto. O hospital alegou que agiu tendo em conta a saúde do feto e da mãe.
Antes de morrer, Izabela enviou uma mensagem à sua mãe: “O bebé pesa 485g. Por enquanto, por causa da lei do aborto, tenho de ficar deitada e não há nada que eles possam fazer. Querem esperar que ele morra ou que alguma coisa aconteça. Se não, corro o risco de infeção.”
O Tribunal Constitucional polaco, meses antes, tinha ilegalizado o aborto em casos de mal formação do feto. E a morte de Izabela espoletou enormes protestos em todo o país: “Nem mais uma”. O governo do PiS, de extrema-direita, seria mesmo derrotado nas eleições seguintes. As feministas foram parte dessa derrota. Mas e hoje? Izabela teria direito ao aborto? É pouco provável.
Em 2023, o neoliberal Tusk foi eleito Primeiro-ministro da Polónia graças a uma muito ampla coligação contra a extrema-direita. As mulheres foram uma enorme força desse processo e o direito ao aborto uma causa maior. Mas a lei ainda não mudou e a sentença agora conhecida (e que tem recurso já anunciado) não garante a mudança legal e social necessária.
Na Polónia, o aborto só é legal em casos de violação e quando está em risco a vida da mãe. Na verdade, quer dizer que é quase sempre impossível. Abortar por violação exige a queixa na polícia e perda de anonimato. Quanto ao risco de vida da mãe, como demonstra o caso de Izabela, pode bem ser tarde demais.
No início deste mês estive em Varsóvia, com o grupo parlamentar The Left. Reunimos com ativistas do direito ao aborto e estivemos numa clínica de aborto, que fica mesmo em frente ao parlamento polaco. Recolhem fundos, distribuem informação e pílulas abortivas, organizam formação para profissionais de saúde e apoiam as mulheres em todo o processo, que normalmente acontece em casa. Com regularidade, a extrema-direita organiza protestos ruidosos à sua porta. E uma das dirigentes está a ser processada por auxílio ao aborto. Mas não fecham portas nem se escondem. O aborto é uma questão de saúde pública e não aceitam voltar para o vão de escada.
As mulheres que abortam não são perseguidas judicialmente por o fazer. O crime é auxiliar o aborto. E a dificuldade é ter acesso a pílulas abortivas ou a profissionais de saúde que aceitem, e saibam, fazer um aborto cirúrgico quando necessário. Mesmo nos poucos casos em que está previsto na lei, a maior parte dos hospitais recusa fazer abortos. E não há qualquer formação dos profissionais de saúde sobre este cuidado de saúde. Quando surge uma complicação, não sabem ajudar. Os “pro-vida” condenam as mulheres à morte.
A justificação para a inação do governo Tusk é o veto anunciado do Presidente polaco a qualquer mudança legal. Mas, como nos explicaram, não é bem assim. O Ministério da Saúde nada faz para garantir que, nos casos em que o aborto é legal, as mulheres tenham acesso a esse cuidado de saúde. Pelo contrário, os entraves só aumentam. Há uma aliança que vai da política à justiça, passando pela saúde, e incluindo médicos e indústria farmacêutica, contra os direitos das mulheres.
No dia em que visitei a clínica de Varsóvia, foi divulgado o relatório do Fórum do Parlamento Europeu para os direitos sexuais e reprodutivos que quantifica os milhões de euros que as forças conservadoras gastam para impor recuos nos direitos das mulheres e minorias sexuais. Uma mistura de extrema-direita, fanatismo religioso e oligarcas que contamina a Europa, com enorme destaque para a Hungria e a Polónia. Mas não só. E o seu trabalho tem consequências. Como lembrou Hanna Gedin, eurodeputada da esquerda sueca presente no encontro, há uns anos as mulheres viajavam da Suécia para a Polónia para terem acesso ao aborto. Agora é ao contrário. O que nos deve lembrar o quão frágeis são as nossas conquistas. Em Portugal, entre 2019 e 2023, estes novos obscurantistas gastaram mais de 3 milhões de euros para manipular o debate público. Quanto estarão a gastar agora?
