Quem boa cama fizer nela se deitará

porMaria Luísa Cabral

08 de dezembro 2024 - 11:45
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O SNS desceu a níveis impensáveis quer o comparemos com a vontade expressa pelos seus pais fundadores quer com os padrões que deveria apresentar como pilar do Estado Social. O que hoje temos é uma caricatura do que sonhámos, com a direita a solidificar as suas posições.

Há muitos anos, em ambiente de saúde, as pessoas que eram beneficiárias da ADSE começaram a ser discriminadas, de forma manhosa e quase imperceptível. Procurava-se uma consulta num hospital privado (incontornável dada a ausência de resposta no público) e lá vinha a pergunta sobre o seguro de saúde; como a resposta apontava para a ADSE, a consulta era marcada para as calendas. Não há vaga, só para ….Tudo cheio! Cheguei a reclamar por escrito, inútil, claro. Com mais ou menos apertão, esta questão foi-se esbatendo ainda que os comentários sobre os privilégios dos funcionários públicos subissem de tom. Como o meu privilégio consistia em fazer um desconto de 3% no ordenado (mais tarde, 3,5%), tanto ou mais do que o preço por um seguro de saúde, nunca me calei embora percebesse que era uma “caminha” que estava a ser preparava. Levantavam-se vozes contra o funcionário público, tipo inimigo público a abater, origem de todos os males.

Depois foi a saga para conseguir um médico de família. Já tens? Conseguiste? Como funciona? Com o passar do tempo, o puzzle foi-se encaixando, cada cidadão viu-se alocado a um médico de família. Um sistema generoso, uma garantia de cuidados de saúde por custo directo nulo. Não sabíamos, então, que o nosso contentamento seria breve.

Muitos centros de saúde nunca tiveram, ou perderam cedo, instalações condignas, tudo muito tosco e grosseiro; condições para o atendimento abaixo de qualquer padrão ocidental; pessoal administrativo sem preparação para aquele embate colossal; falta absoluta de conhecimentos de gestão a nível das direcções; recurso sistemático a empresas de segurança para front desk, com particular falta de sensibilidade e preparação no trato com a população imigrante, uma afronta na abordagem, no tratamento situações que testemunhei várias vezes. E tudo se foi complicando, os atrasos, a falta de eficiência, a demora para uma simples informação, a impossibilidade de marcar consultas ou pedir ajuda.

Piorava o serviço nos centros de saúde, diminuíam as comparticipações da ADSE (uma ironia dolorosa), o beneficiário a pagar cada vez mais, pioravam os acordos, muitos consultórios e médicos deixaram de assinar os acordos o que significa que o utente paga na íntegra a despesa, recebendo uma pequena parte lá para o dia de São Nunca à tarde.

Enquanto esta deterioração insidiosa se instalava, a direita esfregava as mãos. Estava a ganhar corpo um bom naco para ser abocanhado. Não estava escrito nas estrelas, fomos nós que permitimos. Plasmado ali à nossa frente e os dois governos socialistas, tão pró Estado Social, em vez de deitarem mãos à obra para resolverem o emaranhado que se adensava, entretiveram-se com a espuma dos dias, deixando que o sistema ruísse. Por exemplo, os atrasos aumentaram exponencialmente, marcar uma consulta em alguns centros passou a ser uma tarefa quase intransponível ou mesmo uma miragem; as análises (mais de rotina, digamos assim) que chegaram a ser feitas nalguns centros rapidamente passaram a ser feitas no privado, e os laboratórios de análises clínicas passaram a competir em número com as lojas que compram ouro em 2ª mão! Como conseguir uma consulta se tornou impossível, quem pode agulhou para o privado que, gradualmente, foi aprimorando os acordos com as seguradoras, naturalmente, e também com a ADSE. A abertura de novos hospitais privados, ou clínicas, mais ou menos especializados, prosseguiu em ritmo intensivo a drenagem inevitável dos profissionais que, depois de se terem formado mercê de um sistema de ensino público de elevada qualidade, queriam melhores ordenados. Perdoar-me-ão a franqueza, uma vilanagem. Tudo abençoado pela Ordem dos Médicos, magnífica corporação, que durante décadas manteve o numerus clausus no acesso ao ensino da medicina e agora lamenta a falta de recursos humanos e se queixa da demora na formação. Haja vergonha!

Tornou-se absolutamente evidente a transferência e desequilíbrio entre o sistema público e o privado. Não se trata de vasos comunicantes, onde há nivelamento, mas de transvase, onde há desequilíbrio. A complementaridade louvada pela direita é uma treta; como na natureza, os mais expeditos comem os hesitantes e quanto mais comem mais insaciáveis se tornam.

As sucessivas soluções tipo “penso rápido” apenas aumentam a confusão no SNS; os ministros não estão à altura, nomeiam, demitem, auto substituem-se, a máquina gripou. Haverá mecânicos à altura das circunstâncias, où sont-ils? A cena dramática da pandemia a ser resolvida por um militar (cujas consequências ainda estão no seu alvor); as cenas indecentes e inadmissíveis com parturientes a parir em ambulâncias; as cenas de serviços de socorro que não socorrem; as urgências a transbordarem os hospitais; os enfermeiros a abandonar o país por melhores vencimentos; os rumores sobre os centros de saúde particulares que terão carta branca para seleccionarem os doentes a atender, os menos graves, claro. O PS devia ter feito qualquer coisa, não fez; o PSD ainda não fez, nem fará. Já se percebeu que esta ministra, e este governo, não têm unhas para esta guitarra. Remendam de um lado, rebenta do outro; puxam para cima, falta a manta lá ao fundo…. Na melhor das hipóteses, uma década perdida à procura de um plano, de uma visão, de uma proposta de estruturação. Certamente haverá médicos com visão e capacidade de gestão; caberá a estes suportados por um inequívoco apoio político na defesa do Estado Social repor a esperança. Se não for assim, então, nada, nadica de nada.

Maria Luísa Cabral
Sobre o/a autor(a)

Maria Luísa Cabral

Bibliotecária aposentada. Activista do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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