No final de novembro, o Banco Central Europeu fez soar os alarmes: há o risco de uma nova crise de dívidas soberanas. No seu relatório sobre estabilidade financeira, reaparece o argumentário que já vimos em 2010-2012. Os níveis elevados de dívida pública e défices orçamentais que vários Estados-Membros verificam, aliados a uma maior instabilidade política, serão castigados pelos mercados financeiros. O caso francês é tomado como o principal exemplo, tendo os juros sobre os títulos soberanos franceses superado os gregos pela primeira vez.
Ironicamente, o BCE, depois de impor um longo período de política monetária restritiva, aponta agora como mais um fator de peso os custos elevados de serviço à dívida. E acrescenta que o futuro exigirá maiores despesas no sector da defesa e no combate às alterações climáticas. A conclusão é taxativa: é preciso aplicar as novas regras de governação económica e cortar na despesa pública.
Seguindo esta linha, Michel Barnier, para reduzir o défice de 6,1% do PIB para 5%, propunha um orçamento que impunha um corte da despesa pública de 40 milhões de euros e um aumento de impostos em 20 milhões de euros. A 4 dezembro, o governo francês caiu por uma moção de rejeição ao primeiro-ministro, mostrando que este projeto não reúne apoio político.
No mesmo período, também a Alemanha viu o seu governo cair por um desentendimento sobre a gestão das contas públicas entre os três partidos que formavam a aliança governativa, levando o The Economist a dizer que “França não está sozinha nos seus problemas orçamentais”.

Durante a pandemia e a crise energética, para além de França, também as economias normalmente tidas como frugais, a Alemanha, a Áustria e os Países Baixos, aumentaram consideravelmente a despesa pública para apoiar a economia. Já Portugal conteve a sua despesa durante estes períodos, sendo mesmo o país que menos gastou durante a pandemia.
A questão que se impõe é se este risco de uma nova crise de dívidas soberanas é real. As economias avançadas, especialmente França, serão castigadas por terem dívidas públicas elevadas?
Para responder a esta questão, precisamos de relembrar o que aconteceu em 2010-2012. Os países do Sul da Europa recorreram aos empréstimos da Troika, com as condicionantes que conhecemos, depois dos investidores internacionais aumentarem significativamente os prémios de risco dos títulos de dívida (os spreads), tornando impossível o financiamento através dos mercados financeiros.
No entanto, e contrariamente a uma narrativa mainstream que se instalou, o problema central foi o nível de endividamento externo, e não a dívida pública. O primeiro a reter é que, até à crise financeira internacional, Espanha e Irlanda tinham dos rácios de dívida pública mais baixos e Portugal estava alinhado com a média da Zona Euro. A dívida cresceu rapidamente entre 2007 e 2009, mas em linha com o que aconteceu com os restantes países.
Mais do que o rácio de dívida pública, os investidores internacionais focam-se no nível de endividamento externo do país, isto é, não só a dívida do Estado ao exterior, mas também a de bancos, empresas e particulares. Primeiro, porque se a maior parte da dívida pública for detida por credores nacionais, o Estado consegue reduzir o stock de dívida através de aumento de impostos; depois, se as dívidas pública e privada forem internas, os juros mantêm-se no país, não agravando a capacidade financeira nacional; e se os credores forem nacionais há uma maior oposição interna a uma reestruturação da dívida, salvaguardando os seus titulares de possíveis perdas.
Ora, o que aconteceu foi uma deterioração da Balança de Rendimentos, refletindo um aumento dos juros e dividendos pagos ao exterior. A vulnerabilidade a uma paragem súbita do capital privado vinha dos desequilíbrios externos e da consequente dependência, mais do que um descontrolo orçamental.
Voltando ao caso francês atual. Os mercados financeiros estão a responder às oscilações políticas, mas não estão a ser necessariamente coerentes. Dias depois da queda do governo, e mesmo sem um orçamento aprovado, os juros baixaram ligeiramente.
Para além disso, e mais importante, a economia francesa não está dependente do exterior. O economista de Oxford Daniel Kral, por exemplo, mostra dois gráficos interessantes que comparam a situação grega antes da crise e a francesa atual. Primeiro, os custos de serviço à dívida: o governo grego gastava quase 20% da sua receita orçamental em pagamentos de juro e o francês menos de 4%. Segundo, o estado da balança corrente. No final dos anos 2000 a Grécia tinha um défice da conta corrente de 15% do PIB, estando totalmente dependente do financiamento externo, já a balança francesa está próxima do equilíbrio.
Depois de se instaurar nos países periféricos uma lógica de austeridade permanente e bem acatada, agora tenta-se implementar a mesma receita nas maiores economias. A narrativa alarmista de Christine Lagarde, a par da Comissão Europeia, cumpre a função de destabilizar ainda mais os mercados financeiros e tentar forçar agendas nacionais que, para além de já se terem mostrado erradas, não têm apoio político para serem implementadas.
