Vale da Rosa: uva sem grainha e sem dívida

porMadalena Figueira

09 de julho 2025 - 16:46
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Esta história representa mais do que o caso circunscrito do grupo do Vale da Rosa. Pela sua dimensão, as dinâmicas de trabalho, o modelo de gestão e a relação com o sistema financeiro, este grupo é um símbolo do agronegócio no Baixo Alentejo.

Quem passou por Ferreira do Alentejo, já viu a famosa herdade do Vale da Rosa e os quilómetros que ocupa de paisagem forrada a plástico. Criada em 2000 pelo comendador António Ferreira Silvestre, tem 280 hectares de vinha e ficou conhecida pela produção das uvas sem grainha. Durante muitos anos foi apontada como um modelo de “excelência técnica, agrícola e empresarial”.

Emprega cerca de 400 pessoas e, no pico das colheitas, chega ao milhar. Tal como a maior parte das empresas do agronegócio alentejano, para além de portugueses, emprega estrangeiros, do Nepal, Índia, Tailândia, Timor-Leste, Senegal e Venezuela, e recorre a empresas de trabalho temporário e ultraprecário.

Apesar do seu reconhecimento, em dezembro do ano passado, entrou em insolvência, esgotando o seu modelo de gestão. A empresa mãe, Vale da Rosa-Sociedade Agrícola, a subsidiária Uval e o proprietário António Silvestre Ferreira, deram entrada a três requerimentos de Processo Especial de Revitalização (PER) para chegar a acordo de um plano de recuperação com os 54 credores para poder continuar a sua atividade económica.

Ora, esta história representa mais do que o caso circunscrito do grupo do Vale da Rosa. Pela sua dimensão, as dinâmicas de trabalho, o modelo de gestão e a relação com o sistema financeiro, este grupo é um símbolo do agronegócio no Baixo Alentejo.

Na explicação da origem da crise, o grupo aponta dois grandes fatores estruturais e conjunturais. Primeiro, reconhece que a estratégia de crescimento e modernização, para reconversão de vinhas e introdução de novas variedades, assentou em empréstimos bancários. Sendo um negócio sazonal, este modelo trouxe problemas de tesouraria ao não conseguir acompanhar as responsabilidades financeiras em tempo útil.

Depois, estes constrangimentos foram agravados com a perda de contratos importantes com grandes superfícies comerciais. O grupo Jerónimo Martins, detentor da cadeia de supermercados Pingo Doce, passados 25 anos a ter o fornecimento do Vale da Rosa, optou por ter produção e embalamento próprio, curiosamente numa exploração mesmo ao lado. Também o LIDL deixou de comprar ao grupo. Os dois clientes representavam cerca de 33% do volume de negócios em 2023, o que se traduziu numa perda de oito milhões de euros de faturação em 2024.

Resumindo, o Vale da Rosa entrou em insolvência porque fez depender o seu crescimento do endividamento bancário e não conseguiu ter liquidez suficiente para o acompanhar. Ao mesmo tempo deixou de conseguir competir num setor com uma grande tendência para a acumulação e o crescimento vertical, ou seja, o açambarcamento das várias etapas do processo produtivo. Neste exemplo, a Jerónimo Martins eclipsou o Vale da Rosa simplesmente por ter começado a garantir a sua própria produção, o que mostra que produtores ainda mais pequenos não têm capacidade de concorrência com estes gigantes.

As lições que se podem tirar deste exemplo continuam. Para garantir que a campanha da vinha continuava operacional, em março, as sociedades espanholas Iberian Premium Fruits, detida pelo fundo MCH Private Equity, e a Sanlucar Fruits injetaram 3,53 milhões de euros no Vale da Rosa.

As negociações com os credores, começadas em fevereiro, exigiram uma reorganização societária do grupo com a entrada de novos sócios e uma decisão sobre a dívida do grupo, que chegava a superar os 26 milhões de euros.

O plano dava duas opções aos bancos, para além da terceira que seria aceitar a insolvência e receber substancialmente menos pela desvalorização dos ativos: ou um perdão de dívida não inferior a 8 milhões de euros, com o remanescente a ser liquidado nos três meses seguintes, ou um alongamento dos prazos com o pagamento integral das dívidas.

primeira opção ganhou, com o voto favorável de credores que representam cerca de 92% da dívida do Vale da Rosa. Os maiores bancos credores, BCP, BPI e Crédito Agrícola, votaram a favor, enquanto a CGD, o Santander e Bankinter votaram desfavoravelmente e o Novo Banco se absteve. Decidiu-se também que o empréstimo da joint-venture espanhola seria convertido em capital, passando a deter 85% do grupo e os atuais sócios – António Silvestre Ferreira e os quatro filhos – a deterem 15%.

Isto quer dizer que a maior parte do proveito económico retirado desta atividade, altamente intensiva para o solo e que deixa as consequências nefastas no território nacional, é aproveitado pelo capital espanhol. Depois, o perdão de dívida avultada concedida pela banca comprova a hiper-dependência deste setor do capital financeiro e o seu carácter rentista.

Se estes motivos não fossem já suficientes para nos fazer questionar e repensar este tipo de “desenvolvimento” económico, ainda se juntam as consequências ambientais, sociais e políticas.

Alfundão, por exemplo, é uma pequena aldeia entre a herdade do Vale da Rosa e a plantação da Jerónimo Martins. Para além de ser de difícil acesso, acaba por ficar esquecida entre as duas megaplantações, desértica e com poucos ou nenhuns serviços públicos, e empestada pelo cheiro da fábrica de queima de bagaço de azeitona de Odivelas. O desrespeito pela qualidade de vida de quem lá vive alimenta o ódio contra os trabalhadores imigrantes, que estando empregados na agricultura sazonal e em condições pouco salubres, andam muitas vezes a deambular pela aldeia.

O Baixo Alentejo está ocupado por muitos Vales da Rosa e muitas aldeias são Alfundão. Este modelo foi fruto de um poder local pouco exigente ou vislumbrado por uma suposta modernidade, de um poder central submisso aos interesses do capital internacional e da dependência crónica da economia portuguesa ao setor financeiro. Nada está escrito em pedra e nada é inevitável, podemos questionar se este modelo nos serve e como o podemos mudar.

Madalena Figueira
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Madalena Figueira

Economista
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