Irão

“O que se passa no Irão?” Uma pergunta sem resposta fácil

26 de junho 2025 - 12:54

Para encontrar essas respostas, é preciso olhar para dentro das cidades feridas - para os corpos indefesos, as casas destruídas e as vozes que ainda tentam ser ouvidas - mesmo debaixo dos escombros e do medo.

por

Siavash Shahabi

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Praça de Hafte-Tir, em Teerão
Praça de Hafte-Tir, em Teerão. Foto de Abedin Taherkenareh/EPA

Um dos meus amigos perguntou-me: “O que se passa no Irão?”. Era uma pergunta simples, mas responder a ela tornou-se não só difícil, como aterrador. Num país atingido tanto pela repressão como pelos mísseis, não são apenas os telhados que se desmoronam - a linguagem também se desmoronou. As pessoas estão presas debaixo dos escombros, mas as histórias estão enterradas. A verdade, tal como é vivida, já não é falada. E já não se pode confiar no que é dito.

Aqui mesmo, no meio do silêncio e do fumo, coloca-se uma questão maior: Estaremos à beira de uma guerra em grande escala? Serão os recentes ataques de Israel a território iraniano - com consequências mortais para os civis - o início de algo maior? E se assim for, como é que esta guerra poderá alterar o destino do povo iraniano, a situação em Gaza e o frágil equilíbrio do Médio Oriente?

Irão

Quem ouve os iranianos comuns?

por

Priscillia Kounkou Hoveyda

23 de junho 2025

Não se pode responder a estas questões analisando apenas as estratégias militares ou os slogans oficiais. É preciso olhar para dentro das cidades feridas - para os corpos indefesos, as casas destruídas e as vozes que ainda tentam ser ouvidas - mesmo debaixo dos escombros e do medo.

O Irão e Israel não partilham fronteiras. A guerra caiu do céu sobre a sociedade, mas, como sempre, são as pessoas que carregam esse fardo. De acordo com o Ministério da Saúde do Irão, desde o início dos ataques de Israel até ao momento em que escrevemos este artigo, centenas de pessoas foram mortas e milhares ficaram feridas, 90% das quais eram civis.

Histórias de uma cidade bombardeada

Contrariamente à propaganda oficial que tenta reduzir esta guerra a uma série de ataques a infra-estruturas nucleares, a instalações militares ou a assassinatos seletivos de comandantes e cientistas, uma reportagem no terreno do jornal Ham-Mihan traça um quadro diferente. A reportagem é da autoria de Elaheh Mohammadi e Sanaz Sabzi. Mohammadi é a mesma jornalista que foi presa em 2022 pela sua reportagem sobre o enterro de Jina/Mahsa Amini. Elas escrevem sobre ruas curvadas sob o peso da destruição, casas que já não existem e pessoas que não sabem como redefinir a vida a partir do zero.

Na travessa de Abshouri, perto da rua Patrice Lumumba, horas depois do bombardeamento, as pessoas observam em silêncio os bulldozers a escavar um monte de terra, metal retorcido e os restos de uma casa que foi destruída durante a noite por um míssil israelita. Era a casa de Ahmad Zolfaghari - um cientista nuclear - e do seu filho. Os seus corpos ficaram enterrados nos escombros durante horas. Oito pessoas foram mortas. Mas o que resta não é apenas a morte - é a incerteza. Uma mulher idosa que foi projetada pela explosão diz: "Se tivesse sido um terramoto, saberíamos para onde ir. Mas para onde é que vamos agora?"

No complexo residencial Orchid, em Shahrara, a parede de um apartamento foi arrancada. A família Hajimiri - pai, mãe e a filha Tara - morreram todos. Tara, uma jovem atleta, foi encontrada na morgue pelos amigos. No mesmo bairro, a explosão atirou uma mulher grávida, esposa de Majid, contra uma árvore. Ela sobreviveu, mas ainda não tinha encontrado o corpo do marido.

Em Marzdaran, Leila e a sua filha de dezasseis anos foram acordadas pela explosão, pensando por um momento que a sua casa estava a ruir. Sepehr, um residente de Sa'adat Abad, viu um avião de guerra a sobrevoar a baixa altitude e disse: “Esta guerra vai criar o mesmo trauma para o meu filho que a guerra dos anos 80 criou para nós.”

Entre as ruínas, há um nome que as pessoas não conseguem esquecer: Zahra Shams, também conhecida como Najmeh. Uma mulher bondosa e ativa que adorava a natureza e o ciclismo, morta no ataque israelita. Um dos seus amigos disse: “Ela costumava sempre dizer: ‘Somos todos seres humanos’”.

À volta dos bairros bombardeados, cobertores coloridos cobrem agora janelas estilhaçadas. As famílias não sabem se devem ficar ou partir. Algumas olham fixamente para os escombros, impotentes perante o destino. O que Ham-Mihan recolheu das vozes dos sobreviventes é mais do que um relatório - é uma prova. Seja qual for o nome que se dê a esta guerra, ela vem de cima, mas a sua poeira assenta sempre nos rostos das pessoas.

O Direito Internacional, o peso desigual das nações e a responsabilidade

A afirmação de que o Irão representa uma “ameaça” para Israel tem sido um elemento básico do discurso oficial de Telavive durante anos - ecoado juntamente com declarações recorrentes dos líderes do regime islâmico, de Khamenei aos comandantes do IRGC, incluindo a infame “contagem decrescente para a destruição de Israel” exibida na Praça da Palestina, em Teerão. No entanto, apesar das dificuldades de inspeção, a Agência Internacional da Energia Atómica (AIEA) não encontrou até agora provas de que o Irão esteja a procurar ativamente obter armas nucleares. Vários relatórios dos serviços secretos americanos - amplamente citados nos últimos dias - também confirmam que não existe qualquer programa de armas nucleares em curso.

No entanto, o equilíbrio do poder jurídico e do poder político nas relações internacionais está longe de ser igual. O direito internacional pode parecer universal no papel, mas na prática é moldado, interpretado e aplicado pelas próprias potências que o redigiram. O Irão não se encontra entre essas potências, nem é visto como um ator importante na atual ordem global - apesar dos grandes esforços desenvolvidos nos últimos anos para entrar nessa esfera. Mesmo a Rússia e a China, seus aparentes aliados, têm evitado sistematicamente o envolvimento direto em crises desta natureza. Os seus fortes laços políticos e económicos com Israel - só a China exportou quase 19 mil milhões de dólares de bens para Israel em 2024 - fazem da segurança de Telavive uma questão de grande importância para eles. Por outro lado, a Europa, abalada por crises energéticas e fragmentação interna, vê o Irão, na melhor das hipóteses, como uma fonte de “instabilidade regional” e não como um potencial parceiro para a gerir.

No entanto, nenhuma destas realidades absolve a República Islâmica das suas responsabilidades básicas. Todos os governos - independentemente do seu lugar na ordem internacional - são obrigados a proteger a segurança e os interesses dos seus cidadãos. Este dever não pode ser cumprido através de slogans inflamados ou da prossecução de objetivos estratégicos que não trazem qualquer benefício real ao país. Em vez disso, deve basear-se em impedir que o solo iraniano se torne um campo de batalha para as lutas de poder regionais e globais. Os responsáveis do regime deveriam ter reconhecido que qualquer estratégia política que ameaçasse a segurança de outro Estado membro da ONU acabaria por provocar retaliações. Hoje, com os aviões inimigos a dominarem o espaço aéreo iraniano, é evidente o quão vazias eram as declarações de superioridade militar e as falsas garantias de “não guerra”.

No Irão, as questões que se colocam são diferentes - e válidas. Porque é que se sacrificou tanto por um projeto que não trouxe qualquer benefício tangível e apenas aumentou a dependência de outros, especialmente da China e da Rússia? A central nuclear de Bushehr nem sequer fornece 1% da eletricidade do Irão. Além disso, há apenas duas semanas, o antigo chefe da Organização de Energia Atómica do Irão revelou que a Rússia nunca autorizou a utilização de combustível de fabrico iraniano no reator. Entretanto, a China abandonou o seu projeto conjunto de extração de urânio com o Irão sob pressão dos EUA e em busca de acesso a tecnologias nucleares mais avançadas noutros locais. Os responsáveis iranianos apelaram assim a uma maior independência - mas o isolamento do país em relação à comunidade internacional impediu qualquer progresso real.

Por isso, mais uma vez, a questão mantém-se: porquê suportar um custo tão elevado, especialmente quando o Irão já se encontra sobrecarregado por múltiplas crises interligadas?

Dois sonhos destrutivos: A República Islâmica e Israel

Para o público global e ocidental, os slogans dos responsáveis do regime islâmico sobre a destruição de Israel, ou os discursos de líderes israelitas como Netanyahu sobre a defesa da democracia e da civilização, podem ser as únicas narrativas para as quais os principais meios de comunicação social apontam os seus holofotes. Mas para compreender verdadeiramente o que está a acontecer, temos de olhar para dois sonhos de poder concorrentes - dois projetos opostos que parecem estar em guerra um com o outro, mas que na prática têm feito reféns pessoas de todos os lados.

De um lado está a República Islâmica - um regime cuja própria existência foi construída com base na sobrevivência num estado de guerra. Este sistema não tem sentido sem um inimigo. Desde os anos 80 até à atualidade, tem mantido constantemente a imagem de uma ameaça estrangeira para suprimir a dissidência interna. Desde o slogan “apagar Israel do mapa” até à chamada “batalha civilizacional”, tudo serviu para securitizar a política interna e silenciar a sociedade. Nenhum regime poderia governar uma população rebelde, exausta e em protesto como esta sem reproduzir constantemente um sentimento de emergência.

Do outro lado está Israel - um Estado cuja política externa, especialmente nas últimas décadas, tem como objetivo remodelar a região através da desestabilização dos Estados vizinhos. Tem utilizado o trauma legítimo da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto para justificar quase todas as suas ações. No entanto, é preciso notar que os movimentos anti-guerra e as vozes que se opõem à opressão dos palestinianos em Israel foram dos primeiros a sair à rua e a condenar esta guerra. Há apenas alguns dias, o governo de Netanyahu estava à beira do colapso.

Para a República Islâmica e para líderes israelitas como Netanyahu, o Irão não é um país de 90 milhões de pessoas com diversas línguas, culturas, crenças e modos de vida - é simplesmente uma ameaça a ser contida, seja através de repressão sistemática, bloqueio ou mesmo bombardeamento. Estes dois sonhos convergem num ponto: o apagamento da sociedade.

Aos olhos de ambos, o povo do Irão é uma ameaça ou um número - nunca é sujeito político, nunca é dono do seu próprio destino. A República Islâmica afastou as pessoas do palco para sustentar a sua ordem autoritária através da criação de inimigos. Israel, por total desrespeito por estas pessoas, colocou-as na linha de fogo - custando-lhes a vida, as casas e a tranquilidade. Não importa o que Netanyahu diz ou os slogans que repete - a realidade está diante do povo iraniano e permanecerá na nossa memória coletiva.

É precisamente aqui que a Associação de Escritores Iranianos - uma organização cujos membros enfrentaram a censura e a repressão desde a era Pahlavi até à República Islâmica (e não devemos esquecer os assassinatos brutais de vários dos seus membros nos assassinatos em cadeia dos anos 90) - escreve na sua recente declaração:

"Existe agora um receio real de que as conquistas do movimento de libertação 1401 (Mulher, Vida, Liberdade), que por sua vez nasceu de muitas revoltas anteriores, possam ser apagadas no meio desta agressão - e que, na terra queimada deixada para trás, possam crescer novas formas de nacionalismo extremo, políticas de extrema-direita e neofascismo. Especialmente porque para ambos os lados - Israel e a República Islâmica - a guerra é uma ‘bênção’ de que se alimentam."

Vozes de baixo

Nestes dias em que os bombardeamentos, a repressão e a propaganda avançam em paralelo, as verdadeiras vozes do povo não podem ser encontradas nos canais oficiais ou nos tweets da maioria das figuras políticas. O povo do Irão não está nos palácios do poder ou nas conferências da oposição. Vive debaixo dos escombros, nas filas dos hospitais, atrás dos portões das prisões e nos telhados onde as janelas se estilhaçaram.

Nestes momentos, ouvir uma voz que vem diretamente do seio da sociedade torna-se ainda mais importante. Uma declaração conjunta de cinco organizações sindicais independentes - incluindo o Sindicato dos Trabalhadores dos Autocarros de Teerão, o Sindicato dos Trabalhadores da Cana-de-Açúcar de Haft-Tappeh, a Aliança dos Reformados e o Comité de Coordenação - é talvez o exemplo mais claro dessa voz. Nesta declaração, a guerra é firmemente condenada, com uma clareza inequívoca:

"Nós, os trabalhadores e os operários do Irão, pagámos durante muitos anos um preço muito elevado - prisão, tortura, execução, despedimento, ameaças e espancamentos - pelo nosso direito a um nível de vida básico. Continua a ser-nos negado o direito de nos organizarmos, de nos reunirmos e de falarmos livremente. Os trabalhadores e os operários deste país estão legitimamente furiosos e fartos da República Islâmica e dos capitalistas que, durante mais de quatro décadas, acumularam enormes riquezas às nossas custas, mantendo-nos em constante insegurança e sem direitos. Todos os funcionários e instituições envolvidos na repressão e no assassinato de trabalhadores, mulheres, jovens e do povo oprimido do Irão devem ser levados a julgamento e punidos pelo próprio povo".

Esta é a posição das organizações cujos membros estão atualmente presos. A declaração refere que os ataques israelitas não visaram apenas zonas militares, mas também zonas sociais - casas, refinarias e locais de trabalho - onde vivem os trabalhadores e as suas famílias.

Ao mesmo tempo, não têm ilusões quanto ao carácter anti-trabalhador e repressivo da República Islâmica. Apontam claramente as causas profundas:

“Desde as sanções e a corrupção até à restrição das liberdades, tudo isto destruiu, durante anos, a vida quotidiana da classe trabalhadora iraniana.”

Esta declaração - emitida por organizações sindicais independentes que há muito estão sob forte repressão - oferece uma terceira via, baseada em clareza política e moral. Não se baseia nem na propaganda da “resistência”, nem nas promessas da Casa Branca ou de Telavive. Vai buscar a sua força aos slogans de movimentos populares como Pão, Trabalho, Liberdade e Mulher, Vida, Liberdade, e insiste no poder do próprio povo.

E esta não é uma posição marginal; é o cerne da questão. Quando a guerra se abate lá de cima, são os de baixo que melhor compreendem que nenhuma bomba traz justiça. As mesmas pessoas que viveram durante anos entre a morte lenta e o apagamento quotidiano estão agora a exigir não só o fim imediato da guerra, mas também o regresso do poder ao povo - não aos exércitos, não às agências de segurança e não às potências globais.

Comparação do mapa do Irão com o da Europa
Comparação do mapa do Irão com o da Europa.

O que virá a seguir?

É impossível dizer quando poderá haver um cessar-fogo - mas uma coisa é certa: o Irão e Israel nunca farão a paz, pelo menos enquanto o regime islâmico governar Teerão. No entanto, é improvável que as potências mundiais, apesar das suas declarações oficiais, queiram realmente mudar esta situação a partir de cima. Para a Rússia, que vê o mundo em termos de equilíbrio de poder, esta guerra é útil. Para os Estados Unidos, o principal objetivo é transformar o Irão num Estado totalmente controlado. A China beneficia do petróleo iraniano barato e do comércio lucrativo com Israel, enquanto observa de fora.

Irão

À beira do abismo

por

Eskandar Sadeghi-Boroujerdi

13 de outubro 2024

A situação atual criou uma estranha contradição: a República Islâmica, que nunca reconheceu a existência de Israel, é agora forçada a procurar negociações ou um cessar-fogo através de mediadores. Ao mesmo tempo, Netanyahu assiste aos mísseis do IRGC que atingem cidades israelitas, enquanto o seu poder e popularidade estão a cair rapidamente. O seu governo pode cair a qualquer momento e, nessa altura, poderá enfrentar acusações internacionais por crimes de guerra.

Mas a República Islâmica não está em posição de estabelecer os termos. Parece agora que o regime poderá ter de aceitar duas coisas a que antes chamava linhas vermelhas: reconhecer Israel, mesmo de facto, e abandonar o seu programa nuclear.

Por outro lado, como já foi referido, a sociedade iraniana - especialmente a geração mais jovem - está a seguir um caminho diferente. Uma voz poderosa dessa geração é Toomaj Salehi, um jovem rapper popular cuja canção “Rat Hole” se tornou um hino durante a revolta “Mulher, Vida, Liberdade”. Uma frase que ele disse continua a ser repetida nas redes sociais e pode ser uma grande lição para muitos: “O inimigo do meu inimigo não é meu amigo”.


Siavash Shahabi é escritor e jornalista independente, refugiado político em Atenas. Artigo publicado em Fire Next Time.