Economia

Os BRICS e a desdolarização

26 de outubro 2025 - 11:36

Muita gente vê nos BRICS um contraponto à ordem monetária dominada pelo dólar. No entanto, os factos são irrefutáveis: na cimeira dos BRICS, no Rio de Janeiro, não foi expressa qualquer vontade de romper com a divisa “americana”. A desdolarização está fora do horizonte visível.

porEric Toussaint

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Brics. Montagem do infobrics.org.
Brics. Montagem do infobrics.org.

Muitos apoiantes dos BRICS afirmam que estes países estão a avançar para a desdolarização. O que se passa realmente?

Os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) reuniram-se no Rio De Janeiro a 6 e 7 de julho de 2025. Na sua declaração final em 126 pontos, não é mencionada a “desdolarização”. Nenhum ponto refere a necessidade de reduzir o âmbito do dólar. Afirma-se a necessidade de estimular as trocas em moeda local, mas de forma vaga e muito limitada, que nada tem a ver com a criação de uma moeda comum dos BRICS. Os BRICS não dão sinal de querer fundar uma moeda comum e a declaração final da cimeira do Rio não refere a criação de uma moeda comum.

De todos os dirigentes dos 5 países fundadores dos BRICS, só Lula continua a falar de uma moeda de referência comum e mesmo ele cada vez mais raramente a menciona.

Como prova, eis o que Vladimir Putin declarou, aquando de uma importante reunião pública organizada pelo Kremlin após a cimeira dos BRICS realizada em Kazan em finais de outubro de 2024 e dois dias após a eleição de Trump:

“Ouvi muitos debates entre peritos e nos círculos jornalísticos, segundo as quais deveríamos refletir na criação de uma moeda única. Mas ainda é cedo para falarmos disso. Não está nos nossos objetivos.” (Fonte: Reunião do Clube de Debate Valdaï: respostas de Vladimir Putin às perguntas dos participantes – http://kremlin.ru/events/president/news/75521)

Mais adiante, na mesma reunião, acrescentou:

“Não procurámos abandonar o dólar e não está nos nossos planos.”

E ainda:

“As nossas propostas não visam lutar contra o dólar.”

Putin fez estas declarações em novembro de 2024, em resposta a Paulo Nogueira Batista, que de 2015 a 2017 foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento criado pelos BRICS. Uma das perguntas que Paulo Nogueira Batista colocou a Putin tinha precisamente a ver com a criação de uma nova moeda dos BRICS e foi formulada da seguinte maneira:

“Estaria de acordo em dizer que os pagamentos em moeda nacional apresentam certos limites e que passaremos progressivamente, etapa a etapa, com prudência, para um novo meio de pagamento, uma nova moeda de referência? Aliás, o presidente Lula falou disso na sua declaração durante a cimeira de Kazan.”

É preciso notar, como foi mencionado anteriormente, que Lula tinha advogado uma moeda comum, tanto na cimeira dos BRICS de 2023 em Joanesburgo (África do Sul), como numa intervenção à distância durante a cimeira de Kazan (Rússia) em 2024. Forçoso é constatar que Putin, que parecia ter sido favorável a essa perspetiva, a abandonou. Por que razão? Para além da grande dificuldade da criação de uma moeda comum entre economias muitos diversas situadas em quatro continentes, Putin procura dar garantias a Trump, que declarou alto e bom som que qualquer iniciativa a favor da redução da influência do dólar seria objeto de represálias.

Na mesma perspetiva, Putin procura reduzir as sanções impostas contra a Rússia na sequência da invasão da Ucrânia e portanto reduzir os antagonismos com Trump. Até meados de 2025 (incluindo o encontro entre Trump e Putin no Alasca em agosto de 2025), isso parece ter funcionado, pelo menos em certa medida. Abordei os pontos de convergência entre Trump e Putin a propósito da Ucrânia, quanto ao açambarcamento dos recursos naturais, num artigo intitulado “A apropriação dos recursos naturais na Ucrânia e no leste da República Democrática do Congo. O imperialismo na ofensiva”.

Mas a relação entre os dois pode se deteriorar a qualquer instante, como aconteceu em 23 de setembro de 2025, quando Trump publicou na sua rede social Truthsocial:

“Após ter tido conhecimento e compreendido plenamente a situação militar e económica da Ucrânia e da Rússia, e depois de ter constatado as dificuldades económicas que isso causa à Rússia, penso que a Ucrânia, com o apoio da União Europeia, está à altura de se bater e reconquistar a totalidade do seu território na sua forma inicial.”

O futuro das relações Putin-Trump é difícil de prever. Mas mesmo que as relações se degradem fortemente, a criação de uma moeda comum não entrará na ordem do dia, porque outros membros importantes dos BRICS não são favoráveis a essa solução.

De facto, a Índia e a China, as duas das maiores potências entre os BRICS, por razões específicas, não têm interesse em desenvolver uma moeda comum dos BRICS.

A Índia opõe-se a uma moeda comum?

A Índia afirmou por diversas vezes, durante as negociações internas dos BRICS, que não deseja uma moeda comum. Depois, certamente sob a ameaça de represálias alfandegárias e de outro tipo por parte de Trump, afirmou publicamente, na véspera da cimeira dos BRICS no Rio (ver Republic World, revista indiana onlina: “India Not Supporting Russia in BRICS Currency Plan – Here’s Why”). Depois de Trump ter proclamado as ameaças tarifárias em agosto de 2025, o primeiro-ministro não fez qualquer declaração a favor da moeda comum.

A China também não é a favor da moeda comum?

Por seu lado, a China considera que a sua moeda, o renminbi, se vai tornando pouco a pouco uma moeda com estatuto internacional e que não é útil participar na criação de uma nova moeda dos BRICS. A moeda chinesa é uma das cinco reconhecidas para reembolsos ao FMI e a China aumentou fortemente os seus empréstimos no estrangeiro em renminbi (ver o estudo publicado pela Reserva Federal dos EUA em maio de 2025: “Chinese Banks’ Dollar Lending Decline”).

No entanto, é do conhecimento geral que se a China internacionalizasse a sua moeda, perderia o controlo sobre os movimentos transfronteiriços de capitais. Devido à especulação financeira e às quedas da bolsa chinesa de meados da década de 2010, a manutenção e reforço do controlo das trocas foram instrumentos essenciais para disciplinar os membros da “burguesia anti-patriótica” numa sociedade onde abundavam regularmente os fluxos financeiros ilícitos (FFI).

BRICS, anti quê?

07 de outubro 2023

Antes do reforço do controlo de capitais em 2016-2017, a ONG Global Financial Integrity calculou os fluxos financeiros ilícitos saídos da China em 258 mil milhões de dólares em 2013. Ver aqui, Quadro C, p. 8.

Qual a posição da África do Sul a propósito da desdolarização?

A elite financeira sul-africana também fez campanha contra a desdolarização, aquando da cimeira dos BRICS de 2023 em Joanesburgo, e o embaixador sul-africano nos EUA, Ebrahim Rasool, também alertou, em março de 2025:

“Devemos evitar acções que desafiem os EUA, como a desdolarização. Até a China não fala de desdolarização, e a Rússia ainda menos. Não só é teatral, como também não é prático nem economicamente viável. O simples facto de falarmos disso poderia provocar medidas punitivas imediatas.”

Conclusão

Os BRICS não estão a dar passos coletivos em direção à desdolarização. Por detrás da retórica de uma ordem multipolar, os interesses nacionais, a dependência do comércio internacional e o medo de represálias americanas trava a dinâmica coletiva dos BRICS.

Lula permanece isolado na sua defesa de uma moeda comum, enquanto Pequim, Nova Deli, Moscovo e Pretoria privilegiam as estratégias nacionais. Definitivamente, os BRICS de 2025 parecem mais uma coligação de interesses divergentes, que um bloco coerente capaz de transformar a ordem monetária mundial.

Resumo

Aquando da última cimeira dos BRICS no Rio de Janeiro (6-7 de julho de 2025), não se registou nenhum avanço sério concreto para a desdolarização. A declaração final não evoca nem a criação de uma moeda comum, nem uma estratégia concertada para reduzir a utilização do dólar. O que os BRICS fazem na realidade é muito mais modesto: regulam certas transações comerciais em divisas locais, a fim de reduzirem os custos e diminuírem a sua dependência do dólar americano em certas transações específicas.

De todos os dirigentes dos BRICS, apenas Lula continua a mencionar a ideia de uma moeda de câmbio comum, mas cada vez mais raramente. Vladimir Putin, que no passado mostrou interesse, claramente abandonou essa perspetiva. Em novembro de 2024 declarou publicamente que a Rússia não procura afastar-se do dólar, tentando assim apaziguar as tensões com Donald Trump, hostil a qualquer iniciativa que ameace a supremacia do dólar.

Esta prudência reflete também as divergências no seio dos BRICS. A Índia opôs-se à ideia da moeda comum, temendo represálias comerciais americanas. A China, por seu turno, aposta na internacionalização progressiva do renminbi, conservando o controlo estrito dos fluxos de capitais. A África do Sul acha que a política de desdolarização seria economicamente arriscada e suscetível de provocar sanções imediatas vindas de Washington.

Assim, apesar de um discurso frequente em certos meios avançados dos BRICS quanto à dominação do dólar, a realidade política e económica mostra a ausência de vontade de se dotarem de uma moeda comum.


O autor agradece a releitura e os conselhos de Patrick Bond, Sushovan Dhar e Maxime Perriot. O autor é inteiramente responsável pelas opiniões que exprime neste texto e pelos eventuais erros que ele contenha.

Traduzido por Rui Viana Pereira.

Publicado originalmente na página do CADTM.

Eric Toussaint
Sobre o/a autor(a)

Eric Toussaint

Politólogo. Presidente do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo