Reproduz-se aqui na íntegra a carta assinada por vários economistas que assinam a carta em apoio a Francesca Albanese.
A história ensina-nos que os interesses económicos foram, frequentemente, motores e facilitadores essenciais dos projetos coloniais e, não raro, dos genocídios a eles associados. O sector corporativo esteve intrinsecamente ligado ao colonialismo desde a sua génese, contribuindo historicamente para a violência contra, a exploração e, por fim, a expropriação de povos e territórios indígenas — um modo de dominação hoje conhecido como capitalismo colonial racial. A colonização israelita dos territórios palestinianos ocupados não constitui exceção.
O recente relatório de Francesca Albanese, relatora especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinianos ocupados desde 1967, constitui uma contribuição fundamental para a compreensão da economia política do Estado de apartheid israelita, da limpeza étnica dos palestinianos e, atualmente, do seu genocídio. Consideramos, por isso, que o mesmo deve ser amplamente estudado e debatido com liberdade.
Face à carta virulentamente hostil e intimidatória do governo dos EUA dirigida ao secretário-geral da ONU, exigindo a destituição da Sra. Albanese e a supressão do seu excelente relatório, sentimo-nos na obrigação de expressar o nosso forte apoio à Sra. Albanese e de encorajar a ONU a rejeitar as exigências estridentes dos governos dos EUA e de Israel.
Num percurso já conhecido de negação do genocídio e de intimidação contra quem quer que questione o direito da potência colonial a expropriar povos indígenas, os governos dos EUA e de Israel — perante a timidez da maioria dos governos europeus — exigem que a comunidade internacional feche os olhos ao genocídio em curso e, em particular, ao papel central que corporações multinacionais e nacionais desempenham na manutenção do regime de apartheid e na viabilização do genocídio subsequente.
Enquanto economistas, sentimos o dever de destacar três conclusões centrais que o relatório da Sra. Albanese revela com clareza e precisão.
Primeiro, a ocupação e o genocídio são altamente lucrativos para grandes conglomerados. Isto inclui não apenas os habituais gigantes do armamento e da ‘defesa’ (como a Lockheed-Martin, principal fabricante dos F-35, a ELBIT, produtora de armas israelita, e a Palantir, empresa de software cujos algoritmos terão sido fundamentais na selecção de ‘alvos’ em Gaza), mas também marcas conhecidas do grande público (como a Caterpillar, BNP Paribas, Barclays, Allianz, Chevron, BP, Petrobrás, A.P. Moller-Maersk A/S). Com o apoio ativo do governo dos EUA, o orçamento de defesa de Israel duplicou, atraindo volumosos “investimentos” para a máquina de guerra israelita, através de uma vasta rede internacional de conglomerados cúmplices, entre os quais se entrelaçam milhares de empresas israelitas com congéneres nos EUA, Europa, Coreia e até no Brasil. Isto explica por que razão os ativos bolsistas israelitas valorizaram-se em 161% — numa altura de queda da procura, da produção e da confiança dos consumidores.
Segundo, o relatório da Sra. Albanese revela que os territórios palestinianos ocupados por Israel funcionaram como laboratório ideal para testes da Big Tech — função que se intensificou com a transição da ocupação para o genocídio. Nenhum país, por exemplo, concedeu tanto acesso aos dados biométricos da sua população como Israel concedeu à IBM. Desde 7 de Outubro de 2023, empresas como Microsoft, Amazon, Alphabet e Palantir têm expandido os seus serviços de computação em nuvem a um ritmo vertiginoso. Softwares de reconhecimento facial, algoritmos de seleção de alvos e sistemas automatizados de execução estão a ser testados em tempo real, à vontade, com menos restrições éticas do que as existentes nos testes com ratos de laboratório. A Big Tech não podia estar mais satisfeita!
Terceiro, as principais universidades dos EUA e da Europa dependem financeiramente da sua ligação contínua à economia política de apartheid, ocupação e conflito permanente de Israel. Muitas instituições académicas de topo nos EUA e na UE enfrentarão graves dificuldades financeiras se deixarem de apoiar o genocídio israelita. O relatório da Sra. Albanese merece ser elogiado por evidenciar esta sórdida dependência de universidades e instituições de investigação ocidentais de prestígio (como a Universidade Técnica de Munique, os laboratórios do MIT, a Universidade de Edimburgo, entre outras). Os povos da Europa e da América têm o direito de saber que algumas das suas instituições académicas mais prestigiadas estão financeiramente comprometidas com a reprodução da economia política da ocupação e do genocídio israelita.
Daqui a alguns anos, quase todos dirão que sempre se opuseram a este genocídio. Mas é agora que as pessoas de boa consciência têm de se posicionar. Como economistas, declaramos o nosso apoio firme, hoje, a Francesca Albanese — relatora especial da ONU, atualmente sob ataque dos governos dos EUA e de Israel — porque o seu recente relatório lança uma luz indispensável sobre a economia política da ocupação e do genocídio levados a cabo por Israel.
Subscritores:
Yanis Varoufakis, antigo ministro das Finanças da Grécia
Thomas Piketty, autor de O Capital no Século XXI
Nassim Nicholas Taleb, autor de O Cisne Negro
Michael Hudson, presidente do Institute for the Study of Long-Term Economic Trends (ISLET)
Guy Standing, investigador sénior na SOAS, Universidade de Londres
Jayati Ghosh, professora de economia na Universidade de Massachusetts Amherst
Giuseppe Mastruzzo, director do International University College of Turin (IUC)
Jomo Kwame Sundaram, conselheiro de investigação no Khazanah Research Institute
Robert H. Wade, professor de Economia Política e Desenvolvimento na London School of Economics and Political Science
Christopher Cramer, professor de Economia Política do Desenvolvimento na SOAS, Universidade de Londres
Nidhi Srinivas, professor associado de gestão na Milano School of Policy, Management, and Environment
Publicado em Zeteo e traduzido para o Esquerda.net por Paulo Antunes Ferreira.