Cinema mudo

Jay Weissberg: "O festival pode ser um espaço de intervenção política e social"

11 de outubro 2025 - 14:40

Nesta entrevista, o diretor do Pordenone Silent Film Festival/Giornate del Cinema Muto fala da edição deste ano, marcada por temas de antimilitarismo, da relação dos jovens com o cinema e do poder das orquestrações ao vivo.

porPaulo Portugal

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Jay Weissberg
Jay Weissberg. Foto de Paulo Portugal

Há dez anos à frente do Pordenone Silent Film Festival/Giornate del Cinema Muto, Jay Weissberg destaca o poder das orquestrações ao vivo na valorização do cinema mudo, sublinhando o seu impacto emocional. Ao longo da nossa conversa, numa esplanada em Pordenone, o diretor do festival assumiu a sua intenção de programar uma edição politicamente engajada e marcada por temas de antimilitarismo, com filmes da Palestina e Ucrânia com mais de um século. Revelou ainda o seu otimismo relativamente ao renascimento de uma cinefilia entre os jovens, realçando a importância que nota sobre o arquivo e a preservação do cinema. Por fim, deixou-nos com a intenção de incluir, num futuro próximo, um foco sobre o cinema mudo português.

Tenho que admitir que não me recordava de uma sensação semelhante ao assistir à sessão de abertura com Cyrano de Bergerac, mas também ontem com Der müde Tod/A Morte Cansada, de Lang. Não só por causa dos filmes e do trabalho que foi feito com eles, mas sobretudo pelo efeito musical, recriado ali mesmo, na sala, junto de nós. Penso que é algo que muda tudo — melhor ainda que um filme falado.

Compreendo como se sentiu. É um espetáculo extra, em que alguém toca ao vivo ali mesmo, sincronizado com a película. Acho que nos envolve emocionalmente ainda mais, porque grande parte do que estamos a viver ainda se passa na nossa cabeça. Ouvimos a música e vemos as imagens, mas não temos palavras que interrompam esse fluir.

Está há 10 anos à frente do festival, mas vem do circuito internacional de festivais, onde nos encontrámos várias vezes. Como recebeu esta mudança muito mais dedicada a festivais próximos do arquivo, da cinefilia?

Antes de mais, devo dizer que este foi um festival que sempre quis conhecer. A minha primeira acreditação foi em 1988, embora só tenha conseguido vir em 2001. Confesso que, desde pequeno, o cinema mudo foi uma obsessão minha. Até pode parecer estranho, mas eu também era uma criança estranha... (risos)

Foi a figura do Chaplin - uma das figuras em destaque este ano - que lhe chamou mais a atenção?

Na verdade, nada disso. Foi até a Lillian Gish, ela que apresentava uma série de filmes mudos na televisão pública, dos EUA. Vi um, apaixonei-me completamente. Por outro lado, a diferença entre este festival e os outros é que aqui misturamos curtas, longas, o cânone, animações, filmes noticiários, tudo. E, a certa altura, quem segue o programa, percebe que tudo se mistura, criando uma experiência única.

Como encara o completo momento atual do cinema? É otimista?

Tenho mixed feelings. Por um lado, há muito mais filmes mudos disponíveis agora do que nunca — principalmente online; por outro, existem cada vez mais festivais dedicados ao cinema mudo, o que é ótimo. Mas, por outro lado, há muitos espetáculos pontuais em outros festivais, e isso tem o seu lado bom e mau. Mau, porque muitas vezes se pensa que a forma de atrair o público mais jovem é com música contemporânea — tecno, DJs, esse tipo de música. Pode funcionar para o Nosferatu ou até para o Caligari, mas, na minha opinião, esse efeito faz com os filmes pareçam demasiado antigos. E a música muito nova.

Sim, algo só para atrair os jovens.

Exatamente. Mas eles vêm só pela música, e às vezes acabam a olhar para o papel de parede na tela. Porque o filme torna-se papel de parede. Esse tipo de música não compreende o ritmo do filme, as suas emoções. Uma das coisas que mais me orgulha na programação é termos músicos que entendem muito bem os filmes. Porque a música ao vivo é uma parte fundamental da experiência. É claro que não quero ninguém a tocar como se tocava em 1924. Isso também é mau. O que acho incrível nos músicos aqui é que a sua música é intemporal. É a chave para a emoção dos filmes.

Os jovens estão a deixar o TikTok e a reencontrar o cinema

Na semana passada, o Thierry Frémaux (diretor do Festival de Cannes e do festival Lumière, em Lyon) veio a Lisboa promover o filme Lumière! A Aventura Continua. E ele estava um pouco cauteloso com este momento do cinema, pois há cada vez menos espectadores nas salas de cinema.

Mas aqui, a sala está sempre cheia!

É verdade! Mas acha que eventos como este — que falam de memória do cinema e do cinema mudo — podem ajudar a reconquistar a cinefilia?

Gostaria de acreditar que sim, mas hesito em fazer previsões. O que posso dizer é que quase toda a gente que vem aqui pela primeira vez tenciona regressar. Sente-se aqui uma atmosfera de entusiasmo, de vontade de conversar sobre o que viram. O mesmo acontece no Cinema Ritrovato, em Bolonha — embora lá seja mais fácil, porque o festival é no Verão... Mas, pelo que tenho ouvido, há muitos jovens a abandonar o TikTok e a virar-se para o cinema, ou a começar a envolver-se nesta experiência coletiva. Por isso, não sou assim tão pessimista.

Jay Weissberg junto ao cartaz da edição de 2025 das Giornate del Cinema Muto
Jay Weissberg junto ao cartaz da edição de 2025 das Giornate del Cinema Muto. Foto de Paulo Portugal

Olhemos para o cartaz do festival. Quando vi o olhar de Dorothy Mackaill, ao fim e ao cabo, a imagem do festival, senti que me interrogava e me desafiava. Qual a razão dessa escolha, não sendo ela uma estrela famosa?

Boa pergunta. Houve um debate interno sobre se esta seria a melhor imagem. Primeiro, é de um filme (The Man Who Came Back, de 1924, de Emmett J. Flynn) que está completamente esquecido. E Dorothy Mackaill também. A ideia era refletir os tempos difíceis em que vivemos. O seu olhar é desafiante, com aquele olhar direto. No fundo, resistir perante as correntes que nos querem mandar abaixo. Por isso, escolhemos essa imagem. E gosto que seja ousada. O ano passado, a campanha foi mais sexy. Este ano, quis trazer temas anti-guerra.

Essa era a minha pergunta seguinte: além do Chaplin, o programa parece refletir os tempos em que vivemos. Inclui filmes infantis ucranianos, filmes palestinos de 1918. Infelizmente, é a história que se repete. Como programador, quis passar essa mensagem de denúncia?

Nem mais. Sempre achei que este festival, por ser um espaço cultural, deveria ser um igualmente um espaço de intervenção política e social. Nas minhas críticas, também fui sempre político. E acho que, particularmente neste momento difícil, é importante que as pessoas percebam o que se passa na Palestina. E que isto não está apenas relacionado com o Netanyahu; é algo que está na essência do Sionismo há mais de 100 anos! Aliás, devo dizer, que esta foi a primeira vez que coloquei no catálogo um aviso a esclarecer que as opiniões expressas nos textos são da autoria do autor e não do festival. No final, tive elogios. Fiquei feliz com isso.

Muito bem. E mudando de tema; como vê o futuro dos festivais de cinema nesta era digital?

Vejo uma mistura. A versão online veio com a pandemia, por necessidade. Mas acabámos por duplicar as inscrições. E esse número mantém-se.

Até porque nem todos podem viajar até Pordenone...

Exatamente. A projeção online é realmente uma grande oportunidade. Muitas universidades usam esses filmes nas aulas, e isso é ótimo. Não só para diversificar o programa, mostrar obras de mestres e também filmes menos conhecidos. O online acaba por despertar o gosto e o desejo de ver cinema em sala. E com música ao vivo. Pois nada substitui essa experiência direta.

Parece-me que, no passado, contactou já o delegado português da Cinemateca, o Tiago Baptista, e o nosso arquivo, o ANIM. Terá algum plano para dedicar um programa ao cinema mudo português?

Absolutamente. Até porque tudo está já digitalizado, não é? Tenho muita vontade de fazer um programa dedicado ao cinema mudo português. Visitei o arquivo antes do COVID, e falei com eles sobre uma possível parceria, mas por várias razões, isso ainda não aconteceu. Acredito que voltar ao arquivo ajuda a perceber melhor a nossa sociedade. No meu caso, mudou imenso o meu ponto de vista.

Por último, gostava de aflorar o tema Chaplin. Até porque fiquei encantado com o programa sobre o Chaplin fora da sua persona do Charlot. E também nos filmes de família, a cores, que fez no final dos anos 50. Imagino que tenham tudo um bom acesso ao seu arquivo.

Ajudou muito o facto do meu antecessor, o David Robinson, ter sido o biógrafo oficial do Chaplin. A família apoiou desde sempre o festival por causa dele. Temos mantido uma relação próxima com o Chaplin Office, que cuida do património familiar.

Fizemos uma ligação a uma série chamada 'As Origens do Slapstick', mostrando como o humor de cómico físico foi uma ponte de influências transatlânticas.

É incrível como o Chaplin continua atual...

Sim, continua muito moderno. Quando leio o livro do David Robinson, percebo que o Chaplin era muito tímido. Mas, vendo-o agora nestas visitas que recebe no set, percebo que não havia timidez nenhuma. Ele desfrutava mesmo do que fazia.

Para terminar, sabemos que Pordenone será, em 2027, a capital cultural italiana. O que poderá significar isso para o festival?

Pordenone já tem uma ligação forte ao cinema mudo. Mas este reconhecimento será uma oportunidade para programar filmes ao longo do ano, envolver a comunidade e atrair turistas. Para 2027, já tenho algumas ideias — vai ser bom.

Paulo Portugal
Sobre o/a autor(a)

Paulo Portugal

Jornalista de cultura e cinema, autor do site insider.pt