Os Estados Unidos de Trump: que perspetivas internacionais?

por

Tom Stevenson

O tema subjacente à política externa dos EUA continua a ser um consenso das elites. Na sua utilização da maquinaria do império americano e da ideologia da primazia perpétua, Trump partilha muito com os seus antecessores. Máximo poder, máxima pressão – sem ilusões consoladoras.

07 de dezembro 2024 - 18:46
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Trump e militar
Trump e militar. Foto de Chairman of the Joint Chiefs of Staff/Flickr.

O regresso de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos não consegue igualar o choque da sua ascensão em 2016. Mas força a uma mudança permanente na perspetiva histórica. Em 2020, a vitória de Joe Biden foi tratada pelos adversários nacionais e internacionais de Trump como se fosse a libertação de um ataque de delírio. Em 2024, é o mandato único de Biden que parece uma interrupção induzida pela Covid na era Trump. No que diz respeito à política externa, Trump sempre causou confusão. Terá ele sido, da primeira vez, uma ameaça à ordem global liderada pelos EUA ou uma revelação da sua verdadeira face? E o que teria ele feito exatamente se os seus caprichos não tivessem sido tantas vezes frustrados pela burocracia da segurança nacional e pela sua própria incompetência?

Escrever sobre Trump descamba frequentemente para a psicopatologia, o que não tem mal nenhum neste caso. Trump em Mar-a-Lago poderia ser mais fácil de aceitar se fosse mais parecido com Tibério em Capri. Mas, longe de ser um libertino debochado, Trump é um abstémio ruidoso, desinteressado em muito mais do que poder e fama. Essa predileção leva-nos a falar do fascismo e da Europa dos anos 30, ou de um despotismo oriental transplantado. Sempre foi preguiçoso tentar ver Trump como parte de um grupo internacional de governantes autocráticos (Modi, Erdoğan, Orbán, Duterte), cada um dos quais foi de facto definido mais por condições nacionais específicas do que por qualquer tendência global. Na realidade, Trump é uma figura requintada da cultura americana. O seu apelo é a uma forma distintamente americana de nacionalismo mercantil temperado pela fraude. Os seus análogos contemporâneos mais próximos – e não são assim tão próximos – estão no Brasil e na Argentina. Mas ele sempre teve mais em comum com os seus adversários internos do que estes gostam de admitir.

O que significará um segundo mandato de Trump para o mundo para além dos EUA? As previsões são difíceis, dada a natureza errática de Trump e as recentes transformações no sistema político americano. Nem os republicanos nem os democratas são realmente partidos políticos no sentido do século XX: são mais como coleções variáveis de empresários em ação. A moeda da corte em Mar-a-Lago, com os seus comparsas, capangas, ajudantes, clãs e lumpen bilionários, é a atenção. A futura chefe de gabinete de Trump, Susie Wiles, que dirigiu a sua campanha eleitoral e lidera a fação da “máfia da Florida”, terá muito a dizer sobre quem é ouvido por Trump. Mas o seu pensamento é uma mistura instável. Trump é um guerreiro comercial entusiasta que ocasionalmente se entrega a uma retórica anti-guerra. O seu discurso anti-império pode ser tão insincero como a “política externa para a classe média” do patrício conselheiro de segurança nacional de Biden, Jake Sullivan. Ambos acenam com sentimentos que não conseguem compreender. Afinal de contas, uma posição anti-guerra implicaria menos poder, ou menos uso do poder. E, se ele é a favor de alguma coisa, Trump é a favor do poder máximo.

Tal como Biden antes dele, Trump define o tom da corte mais do que gere a atividade prática do governo. Nestas condições, as nomeações para os gabinetes assumem maior importância. Algumas das suas nomeações são bastante convencionais. A sua escolha para conselheiro de segurança nacional, Mike Waltz, é um soldado da Florida que não teria ficado deslocado na equipa de George W. Bush. Waltz tem passado grande parte dos últimos anos a criticar a retirada das forças norte-americanas do Afeganistão, que, segundo ele, conduzirá à “Al-Qaeda 3.0”. Relativamente à Rússia e à guerra na Ucrânia, queixou-se não dos custos para os EUA mas da “estratégia demasiado pequena e demasiado tarde” de Biden. Para secretário de Estado, Trump nomeou Marco Rubio, outro membro da fação neoconservadora ortodoxa que, em tempos, co-escreveu um artigo com John McCain no Wall Street Journal, afirmando que o derrube de Kadhafi conduziria a “uma Líbia democrática e pró-americana”. Rubio está preocupado com esquemas para desestabilizar Cuba, a Venezuela e o Irão. Em 2022 ainda criticava os “infelizes” elogios de Trump à inteligência de Putin. Um dossier interno de verificação republicana (quase certamente obtido e divulgado por hackers iranianos) observou que “Rubio parece ter-se posicionado geralmente como um neocon e intervencionista”.

Se nomeou figuras de segunda linha do sistema para cargos poderosos, isso deve-se em parte ao facto de muitos dos mais talentosos terem migrado para os democratas. Kamala Harris foi apoiada pela maior parte da equipa de segurança nacional de George W. Bush, incluindo Michael Hayden, James Clapper, Robert Blackwill e Richard Haass – um verdadeiro desfile de figuras do sistema da política externa dos EUA. Este facto levou a que os republicanos tivessem de rapar o tacho. Para diretor da CIA, Trump escolheu John Ratcliffe, o seu último diretor dos serviços secretos nacionais no seu primeiro mandato, que foi selecionado pela lealdade política e não por qualquer outra qualidade. Pete Hegseth perspetiva-se como um secretário da Defesa que acredita que as guerras de Israel são o cumprimento de profecias bíblicas e que os soldados americanos não devem ser punidos por cometerem “os chamados crimes de guerra”. Hegseth é um representante do contingente da Fox News que espuma pela boca. É também um lembrete de que é pouco provável que muitas destas pessoas perdurem, se é que conseguem ser confirmadas nos lugares. A escolha de Tulsi Gabbard para diretora dos serviços secretos nacionais irrita os comentadores centristas e os políticos europeus, graças às suas opiniões insuficientemente críticas em relação à Rússia de Putin. Ela é também uma desculpa para fingir que o regresso de Trump é o resultado de um estratagema russo e não um fenómeno pelo qual o establishment democrata pode partilhar a responsabilidade. No geral, as nomeações de Trump não mostram qualquer repúdio pelo establishment da segurança nacional. A lógica das escolhas parece seguir mais a lealdade tributária do que qualquer outra coisa.

Os republicanos MAGA gostam de se considerar diferentes dos tradicionais funcionários da segurança nacional de Washington. Mas será que o são? Em julho, Eliot Cohen, entusiasta da Guerra do Iraque e cofundador do Projeto para o Novo Século Americano, descreveu a plataforma política de Trump como “um cliché, e nem sequer um cliché especialmente assustador”. De acordo com o antigo conselheiro de segurança nacional de Trump, Robert O'Brien, nunca houve uma Doutrina Trump, uma vez que Trump adere “aos seus próprios instintos e aos princípios americanos tradicionais que são mais profundos do que as ortodoxias globalistas das últimas décadas”. Se houve um tema unificador, O'Brien insiste que assumiu a forma de uma “reação às falhas do internacionalismo neoliberal”. O'Brien, a quem não foi oferecido um emprego nesta administração, inventou a descrição do ethos de Trump como “paz através da força”. Ele gosta de dizer que a frase vem de uma citação um pouco mais longa, que ele atribui incorretamente ao imperador Adriano: “paz através da força – ou, na falta dela, paz através da ameaça”. Essa frase é, na verdade, de um comentário de um historiador moderno. E, tal como muitas outras coisas em Trump, “a paz através da força” é o legado de um anterior presidente dos EUA: Ronald Reagan.

A política externa trumpiana tem caraterísticas distintas, mas dificilmente são aberrações. Os republicanos MAGA são a favor de um peso maior na América Latina. Tal como os democratas, os aliados de Trump acreditam que os EUA estão a meio de uma segunda Guerra Fria com a China. A grande exceção à continuidade entre Trump e Biden pode ser a Ucrânia. Algumas, embora não todas, figuras adjacentes a Trump têm criticado o apoio dos EUA à Ucrânia, principalmente com base no facto de ser dispendioso. O facto de Trump ir ou não pôr termo a esse apoio é provavelmente a questão de maior importância estratégica. Sob o comando de Biden e Sullivan, os EUA trataram a guerra na Ucrânia como uma oportunidade para enfraquecer a Rússia e pouco se importaram com o facto de o preço a pagar por isso ser a morte de ucranianos. Trump afirmou que vai acabar com a guerra “antes mesmo de eu chegar à Sala Oval”. Mas não é clara a forma que ele imagina que isso vai tomar, se é que já a imaginou de todo. É provável que aborde a NATO da mesma forma que o fez em 2018, com fanfarronice e ameaças, mas sem desfecho. É provável que as ameaças sejam um instrumento diplomático muito utilizado, independentemente da sua eficácia.

Quanto ao Médio Oriente, um membro da equipa de transição afirmou que Trump está “determinado a reinstituir uma estratégia de pressão máxima para levar o Irão à falência o mais rapidamente possível”, embora se deva dizer que Biden nunca tentou melhorar as relações com o Irão. Trump, tal como Biden, está empenhado em Israel como um ativo ou mesmo uma expressão do poder americano no mundo. As atrocidades escabrosas em Gaza são o melhor testemunho das consequências hediondas do consenso político americano sobre Israel. Para grande parte do mundo, a destruição de Gaza será a memória definidora da presidência de Biden. Mas sob Trump não teria sido diferente. O problema de pintar Trump como o prenúncio do fim de uma ordem internacional esclarecida é que isso suscita a questão de saber como é realmente essa ordem. No Líbano, há 3.500 mortos e continuam a somar, juntando-se às dezenas de milhares de mortos em Gaza. Os EUA têm apoiado Israel, que disseram às forças de manutenção da paz da ONU para abandonarem o Líbano e até atacaram as suas bases. Após as eleições presidenciais, o ministro israelita dos Assuntos Estratégicos, Ron Dermer, visitou Antony Blinken, secretário de Estado de Biden, em Washington, e Trump em Mar-a-Lago, para discutir as operações de Israel no Líbano. Em 15 de novembro, o presidente do parlamento libanês, Nabih Berry, confirmou que as autoridades de Beirute estavam a estudar um suposto plano de cessar-fogo proposto pelos EUA. No mesmo dia, um ataque aéreo israelita em Tayouneh, nos arredores da cidade, arrasou um edifício residencial de onze andares. No Líbano, tal como em Gaza, os EUA têm-se apresentado como um mediador distante, enquanto na prática apoiam uma agressão cruel.

Os descendentes neoconservadores de Reagan, que ocupam tantos cargos em instituições americanas, criticam por vezes a política externa de Trump, não com base no facto de ser uma retirada do mundo, mas porque é uma retirada da ideologia justificadora do poder americano. Quando se desiste da profissão de fé desonesta de respeito pelas normas, regras e ordem, desiste-se do próprio jogo. A questão de saber se os Estados Unidos alguma vez se vincularam realmente a regras de qualquer tipo é tratada como uma questão académica, na melhor das hipóteses. A realidade em Gaza e no Líbano é mais facilmente ignorada do que defendida. A este respeito, Trump é atacado por devolver os EUA à normalidade histórica. Como diz Hal Brands, Professor de Assuntos Globais da Cátedra Henry Kissinger na Universidade Johns Hopkins, sob Trump os EUA atuam “da mesma forma estreitamente interessada e frequentemente exploradora que muitas grandes potências ao longo da história”. Trump não é um isolacionista, na medida em que o termo tem algum significado útil, e não propõe uma retirada do poder mundial. Pelo contrário, escreve Brands, nalgumas questões, a sua administração “poderá ser mais agressiva do que antes”.

Mais do que qualquer outro político americano, Trump passou a ser associado à viragem da atenção imperial americana para a China. Mas dizer que a sua segunda administração estará repleta de falcões contra a China não dá a dimensão da transformação que ocorreu em Washington desde 2016. Relativamente à China, a administração Biden retomou todos os tópicos de discussão de Trump e acrescentou alguns dos seus próprios. Em junho, o Conselho de Relações Exteriores convocou a sua Iniciativa de Estratégia para a China para discutir o futuro das relações EUA-China. A maior parte do establishment da política externa que olha para a China esteve presente. No discurso de abertura, Kurt Campbell, um alto responsável pela política relativa à China nas administrações Obama e Biden, sublinhou que “existe um amplo acordo bipartidário sobre as caraterísticas essenciais da estratégia americana no Indo-Pacífico”. A prova da eficácia desta estratégia, disse ele, é que a China e a Rússia “veem as nossas parcerias transcontinentais com crescente preocupação”. É provável que Trump aborde a China da mesma forma que Jake Sullivan, só que mais ainda – da forma errada, mas mais rapidamente.

Se Trump tem sido coerente em relação a alguma questão de política externa, é quanto às tarifas sobre a China e ao protecionismo em geral. Há décadas que faz declarações mal informadas sobre o défice comercial dos EUA. O plano é aplicar uma tarifa de 60% sobre as importações chinesas e de 10% a 20% sobre todas as outras (a partir de zero sobre a maioria das importações). Os EUA são uma economia de escala continental e estão muito menos orientados para o comércio internacional do que países como o Reino Unido, a Alemanha ou a China. Podem considerar medidas drásticas que outros não podem aplicar. Mas as tarifas comerciais impostas a um único Estado são muitas vezes difíceis de aplicar porque as cadeias de abastecimento transnacionais podem ser modificadas para as contornar. Guerreiros económicos competentes, como Robert Blackwill, que trabalhou para George W. Bush e escreveu um importante estudo sobre “geoeconomia”, apoiaram em grande parte Harris e não estão atualmente disponíveis para ajudar. Talvez alguns saiam do frio quando os cortesãos leais estragarem inevitavelmente as coisas. Robert Lighthizer, o representante comercial dos EUA durante o primeiro mandato de Trump, pode muito bem voltar a desempenhar o papel.

A planeada tarifa de 60% é a mais recente manifestação de uma estratégia mais geral dos EUA em relação à China, que os democratas caracterizaram como uma competição para o século XXI. Na China, é vista como contenção. Os ideólogos na órbita de Trump são geralmente mais belicosos nesta questão do que os mais próximos dos democratas. No entanto, no espírito do consenso bipartidário de Campbell, não estão fundamentalmente em desacordo. Trump ainda não escolheu a sua equipa para a China, mas a sua intenção de expandir a Guerra Fria económica é perigosa. O'Brien argumenta que um segundo mandato de Trump trará mais medidas de contenção, incluindo “uma maior atenção a nível presidencial aos dissidentes e às forças políticas que podem desafiar os adversários dos EUA”. Isso não seria um bom presságio para o futuro das relações sino-americanas, que já são fracas. Nos anos Biden, de acordo com a avaliação anual da ameaça dos serviços secretos nacionais, a China começou a reorientar a sua postura nuclear para uma rivalidade estratégica com os EUA, em parte devido à preocupação com o aumento da “probabilidade de um primeiro ataque dos EUA”. A China ainda não possui forças nucleares capazes de se equiparar aos EUA, mas essa situação pode não durar muito. A instabilidade de Trump torna a gestão deste problema muito mais difícil.

Na Europa, o regresso de Trump foi recebido com o mesmo sentimento de pânico perplexo que a sua vitória em 2016. A 6 de novembro, a manchete principal do Le Monde era “La fin d'un monde américain”. O Frankfurter Allgemeine Zeitung titulou “Trumps Rache” – “A vingança de Trump”. O diário italiano de esquerda Il Manifesto titulou “Il tallone di ferro sugli Stati uniti” – “A América sob o tacão de ferro”. Os rumores de um plano para a guerra na Ucrânia que envolveria o congelamento da linha da frente em troca da desistência da Ucrânia de ser membro da NATO durante pelo menos vinte anos – adoçado por uma garantia compensatória de que as armas americanas continuarão a entrar – não são vistos com bons olhos. Ainda assim, ninguém acredita que Trump vá realmente desmantelar a posição militar dos EUA na Europa, que foi recentemente reforçada com uma nova estação de defesa antimíssil na Polónia, com pessoal da marinha americana. A Comissão Europeia está, sem dúvida, a tentar encontrar formas de proteger as economias europeias das consequências das tarifas de Trump. Mas a reação pavloviana tem sido aproveitar o momento para defender mais despesas militares, o que dificilmente contribui para o investimento produtivo de que a UE necessita.

Um segundo mandato de Trump é claramente um desastre para o escasso esforço internacional existente para coordenar a resposta ao problema do clima. Sob Biden, os EUA levaram a diplomacia climática quase a sério. Na Lei de Redução da Inflação, aprovaram legislação sobre o clima que ultrapassou a de qualquer outro governo norte-americano anterior. É fácil exagerar estes feitos, que são tão insuficientes que chegam a ser negligentes. Mas a posição de Trump – “drill, baby, drill” – (perfurar à vontade) é certamente distinta. É muito provável que venha a emitir uma série de ordens executivas para desmantelar as limitadas medidas de transição energética atualmente em vigor nos EUA. Em maio, a Wood Mackenzie, uma das principais empresas de investigação e consultoria da indústria energética, publicou um documento em que afirmava que a sua reeleição iria “afastar ainda mais os EUA de uma via de emissões líquidas nulas”. A equipa dos EUA na COP29 (a segunda cimeira sucessiva sobre o clima realizada num grande Estado produtor de hidrocarbonetos) parecia desanimada.

Na Grã-Bretanha, seria de esperar que o regresso iminente de Trump provocasse algum questionamento sobre o grau de ligação do país aos EUA. As tarifas são obviamente prejudiciais aos interesses comerciais britânicos. Em 11 de novembro, o presidente da comissão de negócios e comércio da Câmara dos Comuns, Liam Byrne, descreveu-as como um “cenário do dia do juízo final”. A solução proposta por Byrne era que a Grã-Bretanha deveria negociar com Trump uma isenção das tarifas, oferecendo-se para se aproximar ainda mais da posição dos EUA em relação à China. Uma reação mais interessante veio de Martin Wolf no Financial Times, que concorda com Byrne que o governo deve tentar “persuadir a nova administração que, como um aliado próximo e um país com um défice comercial estrutural, deve ser isento”. A proposta de Wolf a Trump é um novo aumento da despesa militar. Pode não resultar, mas “Trump iria certamente gostar da humilhação”.

Wolf reconhece que o regresso de Trump implica problemas mais sérios para o Reino Unido. Desde a Segunda Guerra Mundial, argumenta, o Reino Unido tem acreditado que “os EUA continuariam a ser o grande baluarte da democracia liberal e do multilateralismo cooperativo. Agora tudo isto está mais do que um pouco em dúvida”. Onde estava este baluarte da democracia na violência internacional ininterrupta que é o registo americano desde a Segunda Guerra Mundial? Se os milhões de mortos no Vietname, na Coreia e no Iraque não puseram em causa o alinhamento estratégico da Grã-Bretanha com os EUA, porque é que a segunda eleição de Donald Trump o faria? Será Gaza uma prova do multilateralismo cooperativo que Wolf tem em mente? No fim de contas, não importa, porque para ele “não há substituto para a aliança de segurança dos EUA”. Mesmo agora, mesmo depois de Gaza, a realidade de um mundo moldado pelo poder americano, muitas vezes pelo poder democrático americano, é recebida com negação. O governo britânico recusou-se a pôr fim à utilização das bases britânicas em Chipre para apoiar os ataques de Israel a Gaza, ou a pôr fim à venda de componentes do F-35 a Israel. Segundo o secretário da defesa, John Healey, fazê-lo “minaria a confiança dos EUA no Reino Unido”.

O estilo potentado de Trump vai alterar o ambiente nas cimeiras do G7 e do G20, onde a fachada de cooperação obediente sobreviveu ao arrasamento da cidade de Gaza. A reação à sua vitória recorda-nos a razão pela qual os diabos e os demónios tinham nomes de divindades estrangeiras na antiguidade: o teu diabo é o deus do vizinho. Trump é um demónio conveniente. Mas a sua vitória não fará com que muitos países reconsiderem as suas relações com os EUA. Diferenças táticas à parte, os locais tradicionais da preocupação americana continuarão a ser a Europa de Leste, a Ásia Oriental e o Médio Oriente. O tema subjacente à política externa dos EUA continua a ser um consenso das elites. Na sua utilização da maquinaria do império americano e da ideologia da primazia perpétua, Trump partilha muito com os seus antecessores. Máximo poder, máxima pressão – sem ilusões consoladoras.


Tom Stevenson é editor da London Review of Books e autor de Someone Else's Empire: British Illusions and American Hegemony.

Texto publicado originalmente na London Review of Books. Republicado pelo A L’Encontre.