Tanto a guerra como os problemas económicos na Ucrânia levaram à introdução de uma série de reformas controversas na esfera social. Uma nova legislação laboral tornou a vida dos trabalhadores significativamente mais difícil. As reformas da saúde e da educação também se fizeram notar, com hospitais e escolas muitas vezes fechados por causa dessas reformas. Esses e outros fatores estão a forçar os cidadãos a defender os seus interesses, independentemente das condições difíceis causadas pela invasão russa e pelo seu impacto. Entre os que se opõem à arbitrariedade, é muitas vezes fácil encontrar cidadãos movidos por ideias que são motivadas não tanto por interesses pessoais, mas por interesses públicos. Como acreditam que os seus esforços podem levar a um futuro melhor, as pessoas são encorajadas a contribuir para uma causa socialmente importante, a procurar novas formas de contrariar as arbitrariedades e a unir-se a outras pessoas. Exemplos da luta dos cidadãos pelos interesses públicos, peculiaridades da comunicação e motivação podem ser encontrados no nosso artigo.
A liquidação de escolas levou à união
Este caso é um exemplo de como vários cidadãos motivados tentaram espontaneamente defender a sua instituição de ensino favorita. A escola em questão é a Escola Regional Experimental Integrada de Arte Ihor Hereta Ternopil, que professores e pais tentam evitar que seja "reorganizada". Ou seja, liquidada, desde há seis anos. Graças aos esforços da comunidade, foram alcançados resultados significativos: o Supremo Tribunal anulou a ordem do conselho regional sobre a reorganização. No entanto, a escola ainda não retomou as suas atividades.
Tudo começou no ano de 2018, quando o conselho regional decidiu reorganizar a escola, fundindo-a com outra instituição de ensino. Isto foi feito sem consulta pública. Pais e professores, indignados, saíram à rua para protestar, determinados a defender a escola que tem um programa educativo único aprovado pelo Ministério da Educação e Ciência e pelo Ministério da Cultura. Este programa, para além do ensino secundário geral, deu às crianças a oportunidade de estudar arte numa fase avançada de aprendizagem.
Iryna Lenko, ex-professora da escola de arte regional, disse ao Commons que, no início, nem os pais nem os professores tinham um plano de ação claro sobre como proteger a escola. Por essa razão, tomaram decisões de forma bastante espontânea. Num dia, conseguiram recolher 700 assinaturas em apoio à preservação da escola. Além disso, foram enviadas cartas a vários ministérios e ao Gabinete de Ministros da Ucrânia, e três recursos foram apresentados ao tribunal. Os ativistas da escola foram apoiados por cidadãos, veteranos da ATO e ucranianos no estrangeiro, enquanto também organizavam protestos regularmente.

No entanto, a primeira fase do confronto não acabou a favor da comunidade. O Tribunal Administrativo Distrital de Ternopil, num primeiro momento, e o Oitavo Tribunal Administrativo de Recurso, mais tarde, rejeitaram os pedidos da comunidade. A própria Iryna Lenko, enquanto líder, foi pressionada e foi-lhe retirado o título de "professora sénior", de acordo com uma ordem oficial. No entanto, a comunidade conseguiu que esta ordem fosse anulada em tribunal. No geral, Iryna Lenko diz que passou por várias situações difíceis nos últimos anos da sua luta. Entretanto, o número de pessoas que a apoiavam foi diminuindo, já que muitos acabaram por perder a esperança na possibilidade de defender a escola.
"É difícil, de facto, quando temos toda a gente a tentar derrubar-nos: a câmara municipal, a administração regional. No entanto, ou se assume a luta até ao fim, ou não se assume de todo… Ao mesmo tempo, só nos restam meios legais, e alguns funcionários do governo estão preparados para recorrer a qualquer método. Eles só têm medo do poder, ou seja, do poder das massas", disse ela ao Commons.
Iryna Lenko explica o seu envolvimento ativo na defesa da escola como um desejo de lutar pelo interesse público e garantir que o Estado de direito seja defendido. "Isto não diz respeito apenas ao setor do ensino, diz respeito também a todos os cidadãos da Ucrânia, que supostamente são a única fonte de poder e que são essencialmente impotentes. E estamos a testemunhar como as leis e a Constituição estão a ser ignoradas", disse Iryna. A antiga professora está convencida de que é precisamente a passividade da sociedade que permite às autoridades negligenciar o interesse público.
Neste momento, a situação em torno da escola regional de artes continua instável, sem perspetivas de vitória para nenhum dos lados. Existe a decisão do Supremo Tribunal que, ao contrário dos tribunais anteriores, anulou a decisão do Conselho Regional de Ternopil de reorganizar os estabelecimentos de ensino. Depois, há a segunda decisão do Supremo Tribunal Federal, que negou a revisão do caso "devido a circunstâncias recém-descobertas", dando mais uma vez razão aos defensores da escola. No entanto, as autoridades locais não têm pressa em reabrir a escola, o que obrigou as pessoas a defenderem a verdade em tribunal novamente. A própria Iryna Lenko continua a participar ativamente nas audiências judiciais e a prestar apoio jurídico aos trabalhadores do setor do ensino. Devido à sua iniciativa, os professores de uma das comunidades da região conseguiram que a ordem da administração local para fechar e "otimizar" dez escolas fosse cancelada.
Transparência e apoio público
Ao contrário dos defensores da escola de arte regional, há associações que foram formadas especificamente para defender os interesses públicos e fazem-no regularmente. Analisemos mais de perto a forma como essas iniciativas são organizadas. Um desses exemplos é o movimento socia Be Like Nina, que reúne profissionais de saúde. Os membros do movimento prestam assistência diária tanto a profissionais de saúde individuais como a equipas inteiras, ao mesmo tempo que prestam apoio jurídico a quem recorre aos tribunais. Oksana Slobodyana, líder do movimento Be Like Nina, disse que, para estabelecer um trabalho eficaz em qualquer associação, os seguintes princípios básicos devem ser seguidos: abertura, documentação e comunicação.
"Há que falar abertamente sobre cada passo que se dá. Desta forma, as pessoas vão confiar em nós. Ao mesmo tempo, não é garantido que isso nos vai proteger no futuro, por isso, há que estar preparado para possíveis ataques porque as pessoas têm a capacidade de distorcer tudo à sua maneira. É por isso que a documentação existe. Um documento pode-nos ajudar a protegermo-nos moralmente, já para não falar legalmente", disse Oksana ao Commons.

De acordo com Slobodyana, é útil usar-se grupos em diferentes aplicações de mensagens para se comunicar entre pessoas que pensam da mesma forma. Isso permite que os cidadãos acompanhem todas as ações da organização, vejam o nível de abertura e comparem os requisitos declarados com os resultados das ações. A iniciativa e a compreensão mútua na equipa também desempenham um papel significativo.
"As pessoas completam uma determinada tarefa se a definirmos com clareza, mesmo quando se trata de tarefas de curto prazo, como uma viagem ou um recurso, etc. É por isso que há muitas dificuldades na realização de atividades: há que haver organização", disse Slobodyana.
O apoio financeiro é outro aspeto. Oksana Slobodyana sugere discutir e documentar imediatamente todos os assuntos relacionados com financiamento futuro. No entanto, a motivação dos cidadãos é importante durante a primeira fase. Por exemplo, o movimento Be Like Nina, segundo Slobodyana, existiu durante os dois primeiros anos às custas dos seus integrantes. É evidente que a proteção do interesse público, para além da saúde, da energia, do tempo e do dinheiro, exige que os participantes contrariem os interesses das estruturas governamentais e empresariais, o que inevitavelmente nos leva a fazer inimigos. No entanto, muitos cidadãos estão dispostos a agir, apesar das dificuldades, uma vez que a proteção do interesse público é uma prioridade para eles. Oksana Slobodyana é uma dessas pessoas, assim como muitos outros profissionais de saúde que querem fazer mudanças positivas no setor da saúde.
“Há muitos médicos e enfermeiros na nossa associação que têm enfrentado dificuldades no local de trabalho onde querem prestar cuidados médicos aos doentes, proporcionando-lhes condições normais para que possam ser curados. Estas pessoas querem viver na Ucrânia. Ao mesmo tempo, os seus objetivos pessoais encolhem. De facto, se fizermos alguma coisa, fazemo-lo pelas pessoas, e somos responsáveis perante elas. E uma vez que se assume a responsabilidade, há que seguir em frente com ela", disse Slobodyana.
Ao mesmo tempo, Slobodyana considera crucial o apoio do público. Ela está confiante de que se a população chamar a atenção para um problema socialmente importante, como o encerramento de um hospital, há-de ser muito mais difícil ou mesmo impossível para as autoridades "otimizarem" a instalação de saúde. Já tivemos um caso deste tipo na cidade de Sosnivka, na região de Lviv.
"Com o apoio ativo do público, as autoridades vão estar menos inclinadas a encerrar o centro médico ou irão tentar compreender a situação mais a fundo. No entanto, para obter o apoio do público, é preciso estabelecer uma comunicação entre os profissionais de saúde e o público. Devem ser criados grupos locais no Facebook para informar as pessoas sobre a situação, juntamente com sugestões de ação, para que o público esteja ciente e interessado em apoiá-los", disse Oksana Slobodyana. Ela enfatiza também que é errado esperar até que a guerra acabe antes de começar a abordar os cuidados médicos e outros problemas sociais difíceis, pois pode já ser demasiado tarde.
O poder da organização
Com base na experiência de membros da organização não governamental Movimento Social, vamos discutir como construir uma interação efetiva dentro de uma equipa de pessoas com ideias semelhantes para proteger o interesse público. Os membros desta organização que defende os direitos humanos veem como a sua principal tarefa a superação da desigualdade social e a exploração, pelo que centraram as suas atividades na defesa dos interesses dos trabalhadores em toda a Ucrânia. Segundo Vitaliy Dudin, doutorado em direito e ativista do Movimento Social, a maioria dos problemas que preocupam o cidadão comum estão enraizados nas relações capitalistas. A tensão está a agravar-se devido às ações do Estado, que apoia cada vez mais os interesses dos empregadores e dos proprietários de capital. Esta situação, segundo este ativista, mostra que o Estado não cumpre plenamente as suas funções de proteção do bem-estar público.

Para atingir o objetivo de proteger os direitos sociais e laborais, Vitaliy Dudin acredita que, para além de recorrer aos tribunais, é importante envolver o público, sensibilizando e destacando os problemas, o que permitirá resolvê-los de forma mais eficaz. Dudin apela a que os cidadãos não negligenciem a oportunidade de apelar às autoridades, apesar da reação geralmente indiferente.
"Para fazer avançar a questão em torno da Lei n.º 2980, o problema da falta de indemnização dos trabalhadores de infraestruturas críticas e das suas famílias afetadas pelos ataques russos, recorremos a vários meios, incluindo pedidos de informação pública ao Fundo de Pensões, queixas ao Provedor de Justiça, apelos ao Ministério da Política Social e aos autores da lei. As suas respostas ajudaram-nos a compreender melhor as raízes do problema e a arranjar bons argumentos para levar casos específicos a tribunal. Expressámos as nossas exigências nos meios de comunicação social para obter a reação certa das autoridades", disse Vitaliy Dudin ao Commons.
A criação de uma interação entre os membros é de grande importância na organização de uma associação, e a tomada de decisão coletiva é um aspeto importante deste processo. Vitaliy Dudin acredita que a gestão deve ser descentralizada e que o papel principal na tomada de decisões deve ser partilhado por todos.
“A democracia interna é a chave para a eficiência e sustentabilidade de uma organização. Se uma organização é excessivamente centralizada, pode no início ser eficaz na resposta a certos desafios, mas mais tarde pode encontrar-se numa crise quando, por exemplo, um líder se esgota ou muitas pessoas começam a sentir-se redundantes. É por isso que a democracia não pode ser ignorada. Deve haver um processo coletivo de tomada de decisão, divisão de funções, formação interna, relatórios internos e transparência. É necessário implementar mecanismos que não permitam ao líder fazer escolhas decisivas para a organização sem ter em conta as opiniões dos outros participantes", disse Dudin.
De acordo com Vitaliy Dudin, o Movimento Social é gerido por um órgão de sete membros (o conselho), que é renovado anualmente (geralmente com mais de metade dos membros substituídos). O conselho toma decisões operacionais sobre declarações políticas fundamentais, planos de ação, finanças, pessoas responsáveis, etc. Dudin também acredita que não deve haver hierarquia numa organização de pessoas que pensam da mesma forma, nem divisão estrita entre "pensadores" e "fazedores". Todos os ativistas, acredita, devem sentir-se envolvidos na tomada de decisões para que todos tenham a oportunidade de expressar a sua opinião.
Ao mesmo tempo, Vitaliy Dudin enfatiza a importância das qualidades de liderança. Numa altura em que a incerteza prevalece em muitas áreas na Ucrânia, são os indivíduos fortes e proativos que devem definir a direção da organização, concentrando-se em estratégias e perspetivas a longo prazo.
"Ser um líder no clima de tensão atual não significa fazer o que todos gostam ou ouvir todos. Muitas vezes, exige uma definição clara de prioridades e a capacidade de persuadir as pessoas a agir em condições para as quais não estão preparadas. Se uma organização se propôs a mudar atitudes em relação aos interesses de certos grupos profissionais, ela irá, naturalmente, ter muitos desafios ao longo do percurso. Uma organização que cresce apesar das dificuldades, atrai recursos que respondem aos desafios e atinge um novo patamar é uma organização eficaz. E se a rede de ativistas não se expandir para além de um círculo confortável de amigos, as perspetivas dessa organização não me parecem boas", disse Vitaliy Dudin.
O ativista reparou que um dos problemas de qualquer organização é o problema do crescimento. Refere-se a casos em que uma organização é inicialmente criada com base num círculo confortável de amigos, mas com o tempo torna-se claro que as tarefas se tornam mais sérias e só podem ser resolvidas por uma organização que trabalhe sistematicamente, exerça toda a sua força e não dependa da inspiração dos indivíduos. Outro aspeto importante a considerar é a disponibilidade de recursos. De acordo com o advogado, há uma série de funções de rotina em qualquer organização que devem ser delegadas a alguém de forma remunerada, por exemplo, a prestação de contas.
Independentemente das inúmeras dificuldades enfrentadas pela sociedade ucraniana na questão da proteção dos direitos sociais, existem tendências positivas. Vitaliy Dudin sublinha que a exigência de justiça na sociedade está a crescer, assim como a vontade de lutar por ela diretamente. Isso também é influenciado pela atual situação de guerra, que tornou o estado de luta um estado permanente.
"Acredito que a população de hoje demonstra união, sacrifício e disponibilidade para defender os seus direitos. Muitas vezes, os cidadãos não sabem como fazê-lo eficazmente, mas não duvidam da validade deste caminho, uma vez que a situação é, em grande medida, muito grave. Desistir da luta social é uma derrota na luta por uma Ucrânia melhor", concluiu.
A situação atual é tal que são muitas as iniciativas e decisões adotadas a nível do estado e local que nem sempre vão ao encontro dos interesses da sociedade. Por conseguinte, a participação ativa dos cidadãos no tratamento de questões socialmente importantes é crucial. O envolvimento público não só permitirá que os cidadãos influenciem a adoção de decisões públicas importantes, mas também forçará as autoridades a ter em conta os interesses da população e as opiniões das pessoas.
É evidente de que a situação na Ucrânia é atualmente diferente da da União Europeia, onde os movimentos sindicais têm uma influência significativa e as autoridades são forçadas a ter em conta a sua posição. No entanto, as mudanças estão a acontecer lentamente. A crise dos últimos anos tem sido um importante acelerador dessas mudanças, pois expôs inúmeros problemas sociais e a incapacidade das instituições governamentais de responder adequadamente às necessidades urgentes da população. Isto resultou no aparecimento de muitas pessoas no país que estão conscientes da necessidade urgente de reformas justas e estão prontas a agir, muitas vezes contra os seus interesses pessoais. Mais importante ainda, independentemente do resultado, tais iniciativas ressoam na sociedade porque visam melhorar vidas e cuidar do futuro.
Oleksandr Kitral é jornalista especializado em questões de violação dos direitos humanos, proteção social, voluntariado, educação e ciência.
Texto publicado no Commons. Traduzido por Nuno Sousa Oliveira para o Esquerda.net.