EUA

Trump usa a morte de Kirk para atacar adversários

18 de setembro 2025 - 14:15

Da defesa da liberdade de expressão e crítica à cultura de cancelamento, passou-se para o ataque indiscriminado ao que se chama “discurso de ódio”. Há despedimentos, bullying, recusa de vistos, pressões fiscais sobre fundações e uma ordem executiva repressora a caminho.

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Trump na sua visita ao Reino Unido.
Trump na sua visita ao Reino Unido. Foto de NEIL HALL/EPA/Pool.

No início era a suposta defesa da liberdade de expressão contra a “cultura do cancelamento” e a desculpa do “humor negro” ou da “ironia” face a qualquer crítica relativamente aos ataques mais violentos feitos pelo seu campo político. Mas na ressaca do assassinato de Charlie Kirk, a extrema-direita norte-americana passou agora a esquecer a defesa da Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América para se unir em torno da repressão da esquerda, de figuras independentes que considerem incómodas e de movimentos anti-fascistas com a perseguição e despedimento de quem tenha dito algo que não lhes agrade sobre aquele acontecimento.

Um dos mais recentes e talvez o mais famoso dos despedidos é Jimmy Kimmel. Na passada segunda-feira, no monólogo do seu programa na ABC, teve a ousadia de expressar a sua opinião, dizendo: “atingimos novos mínimos no fim de semana com o bando MAGA a tentar desesperadamente caracterizar este miúdo que assassinou Charlie Kirk como alguém que não é um dos deles e a fazer tudo o que podem para marcar pontos políticos com isto.”

Crónica

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A pressão para o despedir foi imediata. O dirigente da Comissão Federal de Comunicações, Brendan Carr, tratou de sugerir publicamente que o governo podia revogar as licenças de emissão da cadeia televisiva controlada pela Disney. Num podcast, disse que a saída do apresentador podia ser feita “da maneira fácil ou da maneira dura”, ameaçando que haveria “trabalho adicional” da sua agência federal se tal não fosse feito.

O canal acabou por anunciar agora a suspensão por tempo indefinido do programa e o próprio Trump celebrou este cancelamento numa publicação na sua rede social, dizendo ser uma “grande notícia para a América”. Este, aliás, já tinha anunciado depois do cancelamento do programa de Stephen Colbert, numa publicação na sua rede social, que Kimmel seria o “próximo”. Jimmy Fallon e Seth Meyers, também apresentadores de programas do mesmo género mas da NBC também já foram visados pelo presidente.

Também no mundo da televisão, o analista político da MSNBC Matthew Dowd foi igualmente despedido por ter falado na retórica de ódio promovida por Charlie Kirk.

Os ataques chegam aos eleitos na Câmara dos Representantes

O ataque a vozes críticas do trumpismo utilizando o pretexto do assassinato de Kirk chegou até aos próprios eleitos na Câmara dos Representantes. Os Republicanos avançaram com uma resolução de censura de Ilhan Omar, eleita democrata pelo Minnesota, que a teria destituído de todas as comissões em que está envolvida. À tangente, por 214 a 213, uma contra-moção para a travar foi aprovada, apenas por ter conseguido o apoio de quatro eleitos Republicanos.

Omar, numa entrevista, tinha expressado empatia pela família de Kirk mas salientado os seus pontos de vista sobre uso de armas, escravatura e o assassinato de George Floyd.

Esta resolução, a primeira do género a ser votada, era encarada como um teste, uma vez que outras foram apresentadas. Para além disso, também na Câmara dos Representantes, discute-se uma proposta de bloquear fundos federais para entidades que empregam pessoas “que toleram e celebram a violência política” e outra de criar um comité para investigar o “ataque da esquerda radical à América e ao Estado de Direito”. Um congressista disse inclusivamente que apresentaria uma proposta de lei para retirar a carta de condução às pessoas que tivessem louvado a morte de Kirk.

Trump contra a “esquerda radical” e o antifascismo

Como não podia deixar de ser, é Trump quem assume o protagonismo nestes ataques muito antes e além dos seus eleitos. Logo a seguir ao assassinato, tratou de acusar a “esquerda radical” que estaria a causar uma “violência tremenda” e “muitos problemas” no país, prometendo na mesma ocasião que iria resolver isso.

Os responsáveis trumpistas tinham dito nos últimos que o governo iria visar aquilo que alegam ser uma ampla rede de organizações de esquerda que teriam, sem explicar como, contribuído para o assassinato. E esta quarta-feira, Trump declarou o “movimento antifa” como uma “organização terrorista” prometendo investigar profundamente os seus “financiadores”. Como é óbvio, não existe nenhuma organização “antifa”, adotando esta designação uma constelação de grupos com táticas e ideias muitos diversas, apenas com um ponto em comum: o antifascismo. No seu estilo habitual e em maiúsculas, o presidente do EUA define antifa como “um desastre doentio e perigoso de esquerda radical”.

Para além disto, uma ordem executiva sobre “violência política” e “discurso de ódio” estará a ser preparada, segundo fonte oficial da Casa Branca.

Despedimentos, recusa de vistos e chantagem fiscal

Para além disso, o vice-presidente JD Vance tem apelado ao despedimento de quem tenha “celebrado o assassinato do Charlie” e ameaça retirar isenções fiscais à Fundação Ford e à Open Society por supostamente apoiarem a revista Nation, que acusa de ter publicado um artigo que teria “celebrado” a morte de Kirk (quando na verdade este apenas sublinhava o legado de ódio promovido por aquele comunicador).

Depois de declarações nesse sentido por parte do secretário de Estado Marco Rubio, o Departamento de Estado anunciou que estaria a empreender um esforço global para identificar cidadãos estrangeiros que tenham “elogiado, racionalizado ou menosprezado” a morte de Kirk, com o objetivo de criar uma lista que os impeça de ter vistos para entrar no país.

Por seu turno, a Procuradora-Geral Pam Bondi prometeu uma repressão alargada do que chama “discurso de ódio”, afirmando: “iremos definitivamente atrás de ti, se estiveres a atacar alguém com discurso de ódio”. Isto apesar de não haver no ordenamento jurídico dos EUA nenhuma referência ao que seja “discurso de ódio” e de esta ser uma categoria utilizada pelo trumpismo de acordo com as conveniências políticas.

E a onda de despedimentos por causa deste caso não se ficou pela ameaça. Está efetivamente a acontecer. Como escreve o Washington Post, “apenas na passada semana, professores, pessoal militar e trabalhadores do setor privado perderam os seus empregos depois da indignação provocada pelos seus comentários críticos sobre Kirk”. E só nas 24 horas seguintes ao crime, escreve o mesmo jornal, foram despedidos uma reitora assistente numa universidade do Tennessee, um funcionário de comunicação de uma equipa da NFL, a liga de futebol americano, um trabalhador Next Door, em Milwaukee, e o sócio de um restaurante em Cincinnati.

Só que, ironicamente, o mesmo jornal não escapará a esta vaga. Karen Attiah, jornalista do setor de opinião deste meio de comunicação social, denuncia que esta foi a causa do seu despedimento depois de ter criticado “a violência política, os padrões raciais duplos e a apatia americana em relação às armas” e insistido que era preciso não esquecer os assassinatos da deputada do Minnesota Melissa Hortman, do seu marido e do seu cão em meados de junho.

Há ainda notícias de despedimentos em universidades e empresas como a Delta, o Nasdaq e o Office Depot, escreve o Business Insider.

Várias das ameaças trumpistas têm enfrentado resistência. Numa tomada de posição conjunta dada a conhecer pela Reuters, mais de 120 fundações, grupos caritativos e outras ONG juntaram-se numa carta aberta para rejeitar “as tentativas de explorar a violência política para deturpar o nosso bom trabalho ou restringir as nossas liberdades fundamentais, como a liberdade de expressão e a liberdade de doar”. Fundações nada associadas à esquerda como a Bush Foundation e a Carnegie Foundation também subscreveram.

A violência que o trumpismo não quer ver

A nova cruzada trumpista contra a “violência política” e o “discurso de ódio”, que se segue ao ataque à liberdade de expressão daqueles que apoiam a causa palestiniana, é claramente enviesada.

Esquece-se por exemplo que, no primeiro dia do seu mandato, o presidente perdoou todos os envolvidos nos atos de violência do ataque ao Capitólio a 6 de janeiro de 2021. Mesmo aqueles que tinham sido condenados por crimes violentos como o ataque a agentes da autoridade.

Outro caso muito conhecido é o já mencionado assassinato da família de Melissa Hortman, absolutamente desvalorizado pela administração Trump, tendo este inclusive respondido que não sabia quem era a deputada.

Ainda no plano apenas dos mais conhecidos e mais recentes, temos o fogo posto na casa do governador democrata da Pensilvânia, Josh Shapiro e o ataque contra a sede dos Centros para o Controlo e Prevenção de Doenças, habitual alvo dos adeptos das teorias de conspiração de extrema-direita, no qual foram disparados 180 balas e um polícia foi assassinado

Se recuarmos um pouco mais no tempo, em 2017, houve a tentativa de sequestro de Gretchen Whitmer, governadora democrata do Michigan.

O El Diário lembra ainda que um estudo que constatava que a violência política dos EUA é perpetrada frequentemente pela direita foi retirado da página do Departamento de Justiça. O relatório apontava para o perigo dos supremacistas brancos e outros grupos de extrema-direita. A sua violência “continua a superar todas as outras formas de terrorismo doméstico e extremismo violento” no país, podia aí ler-se.

O estudo, feito pelo Instituto Nacional de Justiça, esteve disponível na página até 12 de setembro, mas depois disso foi apagado. Comprovava que “o extremismo violento militante, nacionalista branco e supremacista branco aumentou nos Estados Unidos. De facto, o número de ataques de extrema-direita continua a superar todos os outros tipos de terrorismo e de extremismo violento doméstico. Desde 1990, os extremistas de extrema-direita cometeram muito mais homicídios com motivações ideológicas do que os extremistas de extrema-esquerda ou os islâmicos radicais, incluindo 227 incidentes que ceifaram mais de 520 vidas.”

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