Como podemos ver a questão da libertação da Ucrânia hoje, neste ambiente internacional adverso criado pela agressão de Trump e Putin, e com a Europa a ficar sem bússola?
Durante os três anos desta terrível guerra, que custou enormes sacrifícios à Ucrânia, o país foi capaz de defender a sua independência contra o exército muito superior do agressor imperialista. É claro que isso não teria sido possível sem o fornecimento de armas do Ocidente, mas o principal fator foi a coragem dos próprios ucranianos e a sua elevada motivação. Atualmente, os recursos da nação estão no seu limite e o Governo ucraniano terá de aceitar a paz à custa de perdas territoriais. O destino da Ucrânia é agora importante para o mundo inteiro, uma vez que levanta a questão dos direitos e da soberania dos pequenos Estados. Se o "acordo" de Trump com Putin se concretizar em relação à divisão dos territórios e recursos naturais ucranianos, criará um precedente semelhante ao Acordo de Munique de 1938 e provará que os pequenos Estados são meros objetos no jogo das grandes potências.
O que é que o progresso das negociações entre os EUA e a Rússia mostra até agora?
Ao contrário da Rússia de Putin, que tem um objetivo claro nesta guerra – a eliminação da Ucrânia como Estado independente e a incorporação dos seus territórios, de uma forma ou de outra, na sua esfera de influência – Trump não tem um plano de paz específico. A Ucrânia está na periferia dos seus interesses e representa antes um objeto de negociação para atingir outros objetivos geopolíticos, principalmente o reforço da posição dos EUA no confronto económico e político com a China. O atual curso das negociações assemelha-se, até agora, a uma série unilateral de concessões ao Kremlin (até agora ao nível da retórica), que Trump muito provavelmente acredita que lhe permitirá restaurar as relações de confiança entre Moscovo e Washington. Ao mesmo tempo, é preciso compreender as diferenças fundamentais entre os dois países: a Rússia é uma ditadura opressiva, com uma doutrinação ideológica massiva baseada no sentimento anti-ocidental e, em primeiro lugar, anti-americano. Todas as doutrinas oficiais de política externa do Kremlin identificam a NATO e os Estados Unidos como as principais ameaças, e a Rússia, especialmente depois de 2022, é absolutamente dependente das exportações chinesas. É muito difícil imaginar que o talento negocial de Trump possa provocar uma mudança radical na política externa russa. Simultaneamente, a posição interna de Trump na América pode ser seriamente abalada nos próximos anos; já agora, uma série das suas medidas, tais como a adoção de cortes drásticos nos programas sociais, estão a começar a causar descontentamento.
No primeiro mês do seu regresso ao poder, Trump ainda não conseguiu transformar o sistema político americano numa ditadura pessoal e, para as elites americanas, a ideia da Rússia de Putin como aliado estratégico continua a ser largamente inaceitável. No entanto, é claro que os dois líderes, apesar das suas diferenças, partilham pontos de vista sobre a política global como sendo uma questão de alguns atores globais que dividem o resto do mundo em esferas de influência. De um modo geral, não creio que as conversações entre os EUA e a Rússia sejam bem sucedidas. Pelo contrário, a sua própria forma mostra o regresso da lógica do imperialismo na sua forma mais pura, segundo as linhas do início do século XX. Esta lógica, como sabemos, conduziu a duas guerras mundiais.
Quais são as caraterísticas da visão imperialista do mundo de Putin? O que pensa que ele procura com a normalização emergente das relações com Trump? Será apenas a divisão da Ucrânia?
Rússia
“Há uma guerra cultural contra a própria população”. Entrevista a Ilya Budraitskis
Um papel fundamental na visão do mundo de Putin é desempenhado pela ideia de uma "Rússia histórica" que se estende muito para além das fronteiras da atual Federação Russa. Os "territórios históricos" incluem, no mínimo, todas as antigas repúblicas soviéticas, incluindo os países bálticos, e, no máximo, todos os territórios que alguma vez estiveram sob influência russa ou soviética. Por conseguinte, a Polónia ou a Finlândia, por exemplo, têm algo a temer verdadeiramente. Putin está profundamente convencido de que os países da Europa de Leste não têm uma verdadeira soberania e serão inevitavelmente colónias de facto de uma ou outra grande potência. Penso que, de um modo geral, Trump partilha esta abordagem neocolonial, como o demonstram, por exemplo, as suas declarações sobre o Canadá e a Gronelândia. Outra coisa é que, na perspetiva de Trump, a Rússia é um país em declínio, tanto económica como militarmente. Por isso, vê Putin não como um igual, mas como um potencial parceiro júnior na confrontação com a China.
Como é que a burguesia russa encara o fim da guerra? Existem conflitos de interesses no seu seio, ou está totalmente alinhada com os planos de Putin?
A burguesia russa não existe como ator político; não tem partidos ou representantes públicos para expressar as suas opiniões e interesses independentes. Esta situação está relacionada com os próprios fundamentos do capitalismo pós-soviético, quando a propriedade estatal foi distribuída a atores privados sob o controlo da elite burocrática. A propriedade na Rússia é garantida exclusivamente pela completa lealdade política a Putin e ao seu governo. Por conseguinte, as suas decisões devem ser aceites pelas empresas russas como um dado adquirido, não negociável. Por exemplo, é evidente que o início da invasão da Ucrânia em 2022 não foi bem recebido por nenhum dos chamados "oligarcas" da Rússia, que, em consequência, foram atingidos por sanções e perderam muitos ativos fora do país. No entanto, quase nenhum deles criticou abertamente a invasão, uma vez que isso implicaria a perda de todos os bens e, possivelmente, até da liberdade pessoal. Obviamente, isto não significa que não existam conflitos ocultos no seio da burocracia russa, dos serviços de segurança e das grandes empresas associadas. Mas estes grupos de interesse não podem, de acordo com a atual conceção do regime, exercer uma influência séria nas decisões de política externa.
Como é que a esquerda russa encara um potencial acordo de paz e as questões relacionadas com o fim da guerra?
Atualmente, na Rússia, reina uma ditadura brutal que suprime qualquer opinião diferente da posição de Putin. Entre as centenas de presos políticos encontram-se muitos anarquistas, como Azat Miftakhov, e socialistas, como Boris Kagarlitsky, que se opõem abertamente ao militarismo e ao imperialismo. Vários ativistas de esquerda foram obrigados a abandonar o país depois de 2022. Nenhum deles está entusiasmado com um potencial acordo entre Trump e Putin, uma vez que só levará ao reforço da ditadura russa e ao desenvolvimento das suas ambições imperiais.
Texto publicado originalmente no Epohi. Entrevista de Dimitris Givisis.
Traduzido para inglês para o Europe Solidaire Sans Frontières por Jenny Katsaros.