No programa de governação que o Executivo de Luís Montenegro apresentou esta semana, as certezas continuam a ser muitas, mas normalmente equivocadas. As soluções, por sua vez, são cada vez mais desligadas da realidade da crise de habitação que Portugal vive.
A contextualização da crise que o Governo faz é ancorada em princípios dúbios e omite causas verdadeiras. Ao colocar o ónus da crise na queda das taxas de juro e no “crescimento da população em Portugal via a receção de imigrantes”, o Executivo oculta a realidade de um mercado inelástico e sobreaquecido alicerçado na especulação imobiliária e com um parque habitacional direcionado para a oferta turística ou de luxo.
Mas mesmo na substância, o programa do XXV Governo apresenta pilares para resolver a crise de habitação que em pouco são diferentes do último Governo ou mesmo do Governo de António Costa. A aposta é no aumento da oferta, de forma alienada das condicionantes do mercado que fazem com que a habitação seja uma mercadoria mais do que um direito.
Entrevista
Luís Mendes: "Os preços da habitação começam a situar‑se num nível completamente estratosférico"
Os apelos da Comissão Europeia para aplicar limites ao alojamento local e medidas de controlo de rendas caíram nos ouvidos moucos de Luís Montenegro. E porque “a aposta no aumento da oferta de habitação privada e pública demora tempo a impactar decisivamente nos preços de mercado”, a segunda “solução” é distribuir apoios que farão as rendas subir ainda mais, pervertendo a sua função original.
Em tudo, o programa do Governo para a habitação faz o contrário daquilo a que se propõe. Um dos seus pilares é criar um “choque de oferta de habitação pública, privada e cooperativa”. Em primeiro lugar, assume que o centro desse choque é privado, porque carateriza a pública como “para apoio a famílias e indivíduos em situação mais vulnerável”.
No seu grosso, as medidas para esse “choque de oferta” são em toda a linha a desburocratização da construção privada, indo buscar a figura das “sociedades de reabilitação urbana”, um dos principais mecanismos de especulação das passadas décadas. Dinamizando novas zonas prioritárias de expansão urbana, flexibilizando as limitações de ocupação dos solos e descentralizando para os municípios as responsabilidades, o objetivo do Governo é facilitar a construção num país que tem mais de 700 mil casas devolutas em Portugal e uma outra grande porção de casas alocadas ao turismo e a segmentos de luxo.
As restantes medidas são a continuação dessa ideia: regimes excecionais para reduzir impostos à construção, PPPs para construção, programas para financiar a reabilitação, simplificação. Medidas para atirar dinheiro a privados e priorizar a indústria de construção. Mas mais construção resolve o problema? Como o próprio programa sublinha, a construção demora muito tempo a fazer efeitos na oferta, mas ainda mais se os mecanismos de estimulação da construção não vinculam essa construção ao mercado de habitação acessível. Por isso, as medidas do Governo falharão também a longo prazo, com essa oferta a ser desviada do objetivo de resolver a crise de habitação.
O segundo pilar do programa do Governo para a habitação propõe-se a criar “estabilidade e confiança no mercado de arrendamento”. Mas para isso serve-se de medidas para penalizar os arrendatários. É o caso da “revisão e aceleração dos mecanismos de rápida resolução de litígios em caso de incumprimento dos contratos de arrendamento”, que na prática é a simplificação dos processos de despejo.
E a medida ainda adiciona a possibilidade de recurso a meios extrajudiciais para proceder a esses despejos e mecanismos para situações excecionais e urgentes para facilitar os despejos. Para tornar o mercado realmente estável é, pelo contrário, necessário investir em contratos mais longos e sobretudo na fiscalização do mercado informal que sente a sua maior expressão nas grandes cidades.
Finalmente, o Governo propõe-se a “redesenhar os programas de subsidiação aos arrendatários em situações de vulnerabilidade”, resolvendo os problemas técnicos de articulação a nível burocrático. Ora, é verdade que existem graves problemas no atributo de subsídios, alguns deles causados até pelo anterior Governo de Luís Montenegro, como é o caso dos apoios extraordinários à renda. Nesse caso, dezenas de milhares de pessoas perderam o apoio do dia para a noite. Noutros casos, como no Porta 65, a forma como os apoios funcionam excluem muita gente de se inscrever neles ou demoram muito tempo a ser processados.
Redesenhar estes apoios na perspetiva de simplificar e garantir o seu acesso é certamente positivo, só que a lógica em si de apoios ao arrendamento pode parecer boa a nível conjuntural, mas contém graves problemas estruturais. Num mercado sem tetos às rendas, os aumentos das rendas em atualizações anuais ou novos contratos acabam por comer os apoios, mantendo o aumento da renda para quem tem apoios e fomentando aumentos maiores para o resto da população em geral. Por outro lado, quem está a arrendar casa ou quarto no mercado informal e sem contrato de arrendamento, tem muito mais dificuldade em aceder aos apoios.
No fundo, “o Partido Social Democrata e o Partido Socialista não são estruturalmente diferentes no tipo de respostas”, como dizia Simone Tulumello numa entrevista ao Esquerda.net. Há elementos que procuram corrigir aspetos pontuais da crise de habitação, com parcas medidas de investimento público ou apoios extraordinários, mas nunca uma vontade de resolver o problema estrutural de desregulação e de especulação que favorece os fundos imobiliários, as construtoras e a indústria do turismo.