Os trabalhadores da Ucrânia também lutam contra uma ameaça interna

20 de maio 2023 - 20:43

Em nome do dogma neoliberal, o governo está a minar a soberania económica e política pela qual os ucranianos comuns estão a dar suas vidas. A reconstrução da Ucrânia não pode ser usada para justificar a transformação da economia em favor de oligarcas e corporações. Por Hanna Perekhoda.

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Hanna Perekhoda. Foto publicado no Solidarités.
Hanna Perekhoda. Foto publicado no Solidarités.

Há quase 15 meses, milhões de ucranianos têm vivido sob a ameaça de mísseis que podem atingir qualquer parte do país a qualquer momento.

A Rússia dedicou-se a uma estratégia deliberada e sistemática de terror contra civis. Aqueles que se encontram sob ocupação russa são vítimas de deslocações forçadas, assassinatos, violações e tortura. Acredita-se que dezenas de milhares de crianças tenham sido deportadas dos territórios ocupados para a Rússia, onde a sua identidade nacional foi apagada à força. A cada libertação de uma vila ou cidade ucraniana, novos crimes vêm à tona, mostrando ao mundo todo o que aguarda qualquer território tomado pela Rússia.

É por isso que, independentemente das divergências políticas, toda a sociedade ucraniana está unida na opinião de que a Ucrânia só poderá sobreviver se conseguir expulsar o exército russo de todo o seu território. Face à intenção genocida explícita da invasão russa, as forças civis e políticas da Ucrânia são inabaláveis na sua resistência.

A guerra levou a economia da Ucrânia a uma profunda recessão. Num único ano de guerra, o PIB do país caiu cerca de 30%. A alta inflação significou uma queda no rendimento real. Apenas 60% dos ucranianos conseguiram manter os seus empregos, dos quais apenas 35% eram a tempo integral. Muitas pessoas não só perderam os seus empregos, como perderam casas e familiares. Houve dezenas de milhares de vítimas civis e as vítimas militares certamente devem exceder esse número.

Apesar destas condições difíceis, o povo ucraniano recusa-se a ser uma vítima passiva. A capacidade de auto-organização dos ucranianos comuns foi e continua a ser uma das chaves para a resistência do país à agressão imperialista russa.

Mas, em vez de se concentrar na adaptação da economia às necessidades da guerra, as autoridades ucranianas lançaram um vasto programa de privatização. Aproveitando-se da lei marcial e das restrições às manifestações, o Governo também desmantelou a legislação laboral e aprovou uma série de outras medidas impopulares.

Isso está a minar a coesão social num momento em que a Ucrânia mais precisa dela. Infelizmente, os trabalhadores ucranianos estão a enfrentar ataques do seu próprio governo, mesmo quando defendem o país de um inimigo externo. Enquanto isso, o Estado não consegue atender às necessidades de segurança e de consumo da população.

Após a guerra, a Ucrânia enfrentará uma tarefa colossal. Terá de lidar com a destruição maciça da infraestrutura, relançar o setor e lidar com uma grande crise demográfica: oito milhões de pessoas, a maioria mulheres, deixaram o país. Um número significativo de refugiados pode não retornar do exterior, alguns devido à deterioração dos direitos sociais e das condições de trabalho.

Precisamos garantir que a reconstrução pós-guerra não seja usada para justificar a transformação radical da economia ucraniana em favor de oligarcas e corporações.

No entanto, em vez de adotar medidas que incentivariam os ucranianos a voltar para casa depois da guerra, as autoridades estão a exigir a comercialização da assistência médica, a privatização total dos ativos estatais e cortes nos serviços públicos para atrair investimentos estrangeiros. Em nome do dogma neoliberal, o governo está a minar a soberania económica e política pela qual os ucranianos comuns estão a dar suas vidas.

Mesmo nestas condições adversas, os trabalhadores ucranianos estão a mobilizar-se contra as políticas que atacam os seus direitos sociais e, ao mesmo tempo, ativistas sindicais e de esquerda estão a apoiar os seus esforços de organização. Mas estas pessoas, que estão a lutar heroicamente pela sua soberania em todas as frentes, precisam de aliados. A esquerda internacional e o movimento sindical podem ajudar os ucranianos a recuperar sua independência do agressor russo, bem como a se defender da dependência neoliberal.

O apoio militar, financeiro e diplomático à Ucrânia é essencial para que ela consiga não apenas um cessar-fogo e uma paz duradoura, mas a retirada imediata das tropas de ocupação russas de todo o território.

No entanto, também precisamos garantir que a reconstrução pós-guerra não seja usada para justificar a transformação radical da economia ucraniana em favor dos oligarcas e das corporações e não do povo. A única maneira de garantir a segurança nacional, tanto em tempos de guerra quanto depois, é estabelecer condições de trabalho decentes, de acordo com os padrões europeus e internacionais. A Ucrânia também precisa desenvolver uma política eficaz para a proteção dos direitos dos trabalhadores.

Três iniciativas estão a fazer muito para levar as vozes das organizações progressistas ucranianas para o mundo todo. A Rede Europeia de Solidariedade com a Ucrânia, a Rede de Solidariedade dos EUA e a Esquerda Eleita para a Ucrânia foram fundadas para oferecer apoio concreto à resistência popular ucraniana. Usando os seus vínculos com organizações cívicas, sindicatos e feministas na Ucrânia, bem como com organizações bielorrussas e russas contra a guerra, as iniciativas estão a apoiar a resistência ucraniana através de solidariedade internacional, fundos e comboios de ajuda.

São os trabalhadores que mantêm as fábricas, os hospitais, as escolas, os comboios e os escritórios da Ucrânia a funcionar, muitas vezes com risco de vida. E são os trabalhadores que estão a lutar na linha de frente, garantindo a sobrevivência do Estado. É por isso que somente os trabalhadores ucranianos podem decidir o futuro do seu país. Devemos garantir que as suas vozes sejam ouvidas.


Hanna Perekhoda é investigadora ucraniana, militante socialista feminista e integra a Rede Europeia de Solidariedade com a Ucrânia.

Texto publicado originalmente no EESF. Traduzido para português pela Revista Movimento. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.

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