Foram 140 os decretos presidenciais de Trump sobre migrantes apenas nos primeiros cem dias de governação. A linha condutora entre eles tem sido a mesma: ilegalizar, deter, expulsar. Muitos têm sido contestados judicialmente ou até anulados pelos juízes mas a ofensiva de expulsão em massa continua.
Na passada quinta-feira, o governo dos EUA pediu ao Supremo Tribunal a revogação do estatuto legal de perto de 532.000 imigrantes vindos da Venezuela, de Cuba, da Nicarágua e do Haiti e que têm direito excecional de residência atribuído durante a era Biden devido à “situação dos direitos humanos” nos seus países. Um pedido vindo depois da sentença de um juiz de Boston ter suspendido a anulação deste programa decidida pelo executivo norte-americano e que, caso seja atendido, ilegalizará estas pessoas e permitirá que a sua expulsão se junte às outras já em curso.
Mas esta obsessão anti-migrantes contrasta diretamente com a decisão de começar a trazer para os EUA imigrantes brancos afrikaners da África do Sul. De acordo com documentos obtidos pelo New York Times, esta começará já esta segunda-feira.
O governo dos EUA alega que este grupo étnico, descendente dos colonizadores holandeses da África do Sul, estará a a ser vítima de “perseguição racial” no seu país. A chegada dos primeiros 54 será celebrada, segundo um memorando do Departamento de Saúde e Serviços Humanos, com um evento oficial à chegada.
Para além do contraste com os migrantes latino americanos de nacionalidades escolhidas a dedo pela administração Biden para passar uma mensagem política, também fica clara a diferença de tratamento com a forma como tinham vindo a ser tratados os pedidos de estatuto de refugiado de outros países em guerra como os da República Democrática do Congo ou com os perseguidos Rohingya, só para dar dois de muitos exemplos possíveis. Muitos têm sido recusados, os que são aceites, segundo a ONG American Immigration Council, estariam a demorar uma média de 18 a 24 meses para serem aceites. Há quem fique anos à espera de uma decisão.
E, logo em janeiro, Trump tratou de assinar uma ordem executiva para suspender o programa que permita a entrada de refugiados no país, deixando mais de 100.000 pessoas com estatuto de refugiado já aprovado num limbo sem poder entrar no país. Nela se pode ler que “os Estados Unidos não têm capacidade para absorver um grande número de migrantes, e em particular refugiados, nas suas comunidades de uma forma que não comprometa a disponibilidade de recursos para os americanos, que proteja a sua segurança e que garanta a assimilação adequada dos refugiados”.
O “grande número” parece não ser um problema no caso dos Afrikaners. O executivo trumpista enviou várias equipas para Pretoria para analisar os mais de 8.200 pedidos de afrikaners para receber o estatuto de refugiados. No memorando governamental admite-se que o plano é aceitar este ano já 1.000 de entre eles.
O tradicional argumento das despesas, também. Este memorando dá conta que o governo dos EUA lhes vai providenciar habitação “temporária ou de longo prazo”, com “mobília básica, bens essenciais para a casa e de limpeza”, ajuda para “mercearia, roupa adequada ao tempo, fraldas, produtos de higiene e telefones pré-pagos que possam suportar o bem-estar diário dos lares”, tudo o que tem sido negado a outros.
Uma lei de expropriação de terras que pouco muda apresentada como um perigo
Do lado do governo da África do Sul, contesta-se em memorando diplomático que os afrikaners devam ter estatuto de refugiados. Chrispin Phiri, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros daquele país, declarou ser “extremamente lamentável que pareça que o realojamento de sul-africanos nos Estados Unidos sob o pretexto de serem ‘refugiados’ tenha motivações inteiramente políticas e tenha como objetivo questionar a democracia constitucional da África do Sul”.
Trump cortou em fevereiro toda a ajuda financeira à África do Sul, acusando o seu governo de apoiar o Irão e de atacar Israel.
Na base das críticas norte-americanas está ainda a implementação de uma lei que permite em casos muito limitados que o governo se aproprie de terras privadas sem indemnização. E que tem sido utilizada pelas forças conservadoras para tentar lançar o medo de perseguições massivas contra os afrikaners.
30 anos depois do fim oficial do apartheid, a esmagadora maioria das terras continua nas mesmas mãos do que antes, uma análise oficial dizia que em 2017 os sul africanos negros apenas detinham 4% do total das terras do país. A desigualdade noutros aspetos é também gritante. A Review of Political Economy publicou um artigo no que se estima que os brancos do país têm tipicamente vinte vezes mais rica que os sul africanos negros e a sua taxa de desemprego é de 46,1%, comparada com 9.2% dos brancos.
O ANC, agora no governo em coligação, tem vindo a ser alvo de fortes críticas por não ter feito o suficiente para combater estas desigualdades e por nada fazer no sentido de uma reforma agrária.
Por isso, Cyril Ramaphosa avançou assim, não com uma reforma agrária, mas com uma nova lei sobre expropriações estatais para substituir a que estava em vigor, ainda aprovada na época do apartheid.
Nela, a expropriação sem indemnização só pode acontecer se for “justa e equitativa e no interesse público”, o que é restrito a casos em que a propriedade não esteja a ser usada nem haja a intenção de a usar, quando a não estiver a utilizar com motivos de especulação, ou quando haja riscos para a população.
O porta-voz presidencial, Vincent Magwenya, citado pela BBC, explicou que o Estado “não pode expropriar arbitrariamente a propriedade ou por outra finalidade que não o interesse público” e que esta só acontecerá nos casos em que não seja alcançado um acordo com os proprietários e se estes insistirem em manter as terras sem serem exploradas. Sobre as expropriações com direito a indemnização a lei mantém as mesmas formulações da anterior lei. E, apesar de toda polémica, não são até ao momento conhecidos casos de expropriações sem indemnização por parte do Estado.
E Chrispin Phiri, à DW, afirma que há uma ofensiva de desinformação e que a lei agora em vigor é semelhante a muitas das leis neste domínio de outros países. O Ministério dos Negócios Estrangeiros do seu país não deixa de notar ser “irónico” que Trump atribua o estatuto de refugiado “para um grupo que na África que é um dos mais privilegiados economicamente enquanto pessoas vulneráveis nos EUA e outras partes do mundo estão a ser deportadas ou estão a ver negados os seus pedidos de asilo apesar das suas dificuldades reais”.
Despedimentos massivos de funcionários públicos e deportações massivas, agendas contraditórias?
Em plena vertigem de desmantelamento do Estado com despedimentos massivos de funcionários públicos por parte do executivo, em parte justificados também por questões de poupança, Trump ordenou esta sexta-feira que o Departamento de Segurança Interna aumentasse a força que tem como atribuição proceder a deportações de migrantes em 20.000 agentes. Atualmente à perto de 6.000 agentes com estas atribuições.
O presidente instruiu aquela instituição governamental a “substituir e contratar polícias estaduais e locais, ex-polícias federais, polícias e pessoal de outras agências federais e outros indivíduos”, não esclarecendo como estas contratações serão financiadas.
O reforço vem depois de Trump ter já anunciado outra tentativa para aumentar o ritmo de deportações: a “auto-deportação” para a qual estaria disposto a pagar 1.000 dólares por pessoa e o custo da viagem a quem saísse do país voluntariamente. A ideia é apresentar aos “imigrantes ilegais” a escolha: deixar os EUA voluntariamente, com apoio e assistência financeira do governo federal ou ficar e sofrer as consequências”. Entre estas estão ameaças de “multas consistentes com a lei aplicável para crimes relacionados com a imigração; apreensão de salários; e confisco de poupanças e bens pessoais, incluindo casas e veículos”.