Entrevista com duas ativistas socialistas russa e ucraniana

21 de janeiro 2024 - 16:04

Mia e Vasylina militam, respetivamente, no Movimento Socialista Russo e no Sotsialnyi Rukh ucraniano. Nesta entrevista partilham pontos de vista sobre os regimes dos seus países e a guerra.

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Na recente reunião do Comité Internacional da Quarta Internacional, realizada no IIRE em Amesterdão, estiveram presentes duas delegados da Ucrânia e da Rússia. A Resistência Anti-Capitalista falou com Vasylyna, membro do Sotsialnyi Rukh, Movimento Social, e Mia, ativista do Movimento Socialista Russo, sobre a guerra e as atividades das suas organizações.


Como é que se envolveram na política?

Vasylyna: O meu interesse pelo ativismo político surgiu durante os meus estudos em Estudos Urbanos, onde utilizámos frequentemente a teoria marxista para analisar diferentes processos que afetam os nossos espaços de vida. Rodeada por muitos jovens progressistas de toda a Europa na universidade e unida por lutas semelhantes por sermos estudantes internacionais, iniciámos um sindicato para os estudantes do nosso departamento, lutando por propinas iguais para estudantes europeus e não europeus. Entrei para o Sotsialnyi Rukh porque a teoria por si só não é suficiente, movida pela vontade de ser ativa no terreno. Face aos devastadores desafios atuais, a sociedade ucraniana é extremamente vulnerável, mas está definitivamente mais aberta à mudança. Obviamente as coisas não podem continuar como dantes. Por exemplo, há muito mais discussão sobre a corrupção e os jornalistas estão a revelar exemplos aos mais altos níveis do poder, pelo que parece que as coisas estão a começar a mudar.

Mia: Comecei a interessar-me por política durante os meus anos de escola. Quando tinha 14 anos, aconteceu a anexação da Crimeia. Foi nessa altura que comecei a ler as notícias e a ouvir os comentadores políticos. Contudo, quase não tinha conhecimento das diferenças no espetro político. O campo da oposição na Rússia é predominantemente liberal, pelo que, para muitas pessoas, as palavras “liberalismo” e “democracia” são frequentemente equiparadas. Como muitas pessoas da minha idade, eu era anti-Putin, anti-conservadora, a favor de eleições livres, dos direitos civis e da anti-corrupção. Suponho que o tempo que passei na universidade foi importante neste sentido. Comecei a ler muito mais sobre história e política e pude participar em debates políticos a partir de uma perspetiva muito mais crítica. Desde 2021, tenho-me envolvido na política fora do Conselho de Estudantes e do contexto universitário. Fui observadora eleitoral nas eleições legislativas e municipais de 2021 e comecei a participar nas atividades do RSM. Pouco depois, tornei-me militante.

 

Qual é a posição do Sotsialnyi Rukh relativamente ao governo de Zelensky?

Vasylyna: A posição do governo é clara no que se refere à luta pela soberania da Ucrânia, o que recebe muito apoio das pessoas. Mas nós, enquanto organização, somos extremamente críticos em relação à direção política do governo, acompanhada de reformas neoliberais e cortes maciços na despesa pública. No Sotsialnyy Rukh, estamos a encontrar formas de nos organizarmos em torno destas questões. As pessoas estão unidas para defender o país, mas isso não significa que Zelensky tenha um apoio unânime.

Infelizmente, a oligarquia e o capital estrangeiro têm uma influência significativa no nosso atual presidente. O atual governo não foi capaz de fazer a transição de uma economia baseada no lucro para uma economia de guerra que funcionasse para fornecer capacidade de defesa e resolver problemas humanitários. A procura de aliados entre parceiros internacionais, principalmente entre os Estados mais ricos que têm os seus próprios interesses imperialistas (como os EUA), pode prejudicar o apoio à Ucrânia e gerar confusão nos países do Sul Global. Não acreditamos que o nosso governo seja capaz de corrigir os seus erros. É por isso que existe uma forte necessidade de pressão popular de massa e de crítica política numa perspetiva de esquerda. As principais prioridades do Estado devem basear-se na proteção dos interesses das pessoas, na promoção da coesão social e na promoção da solidariedade global contra a opressão.

 

Que trabalho de campanha está a fazer o Movimento Socialista Revolucionário?

Mia: O trabalho de campanha é difícil para os nossos camaradas que estão na Rússia, devido ao regime repressivo. Tentamos trabalhar dentro da lei porque não queremos pôr os ativistas em perigo. Os nossos principais objetivos agora são mudar o discurso político da oposição para a esquerda e dar apoio prático às pessoas. Por exemplo, temos estado a trabalhar com sindicatos independentes na Rússia. Existe um sindicato para trabalhadores das entregas que temos ajudado a organizar e a apoiar. Quando os ativistas e os líderes dos sindicatos independentes são presos, organizamos ajuda – financeira e através de campanhas nos meios de comunicação social.

Trabalhamos ativamente no âmbito da “Plataforma Universitária” que reúne professores e estudantes para defender os seus direitos e liberdades. Tentamos criar comunidades e proporcionar um espaço de discussão política para ultrapassar a atomização da sociedade russa. Mesmo dentro de regimes repressivos, ainda há lutas e problemas que são combatidos no terreno. Sempre que possível, associamo-nos a iniciativas populares para defender os direitos das pessoas contra o lobbying das empresas de construção e para resistir à destruição da natureza. Estamos também a dar prioridade à plataforma feminista, bem como ao trabalho anti-colonial e descolonial dentro do nosso movimento; isto é particularmente importante para nós, dada a invasão da Ucrânia. O que é frequentemente ignorado é que, enquanto o nosso governo trava uma guerra colonial contra a Ucrânia, os povos indígenas na Rússia estão a morrer. As populações indígenas vivem frequentemente em zonas pobres da periferia da Rússia, onde as pessoas estão atoladas na pobreza e na dívida. O recrutamente ocorre de forma desproporcionada nas regiões pobres do país, onde as pessoas são pressionadas a alistar-se no exército para pagar dívidas, não têm frequentemente capacidade de resistência e dispõem de menos fontes de informação do que o resto da população.

 

E quanto à guerra?

Vasylyna: Apoiamos o direito dos ucranianos a resistir à invasão e à colonização. Alguns membros do Sotsialnyi Rukh juntaram-se às forças armadas e estão a combater o exército russo. Atualmente, não existem verdadeiramente outras opções viáveis em termos de milícias e unidades de combate separadas.

 

Há quem diga, na esquerda, que o conflito é sobretudo um conflito por procuração entre imperialistas, concordam?

Vasylyna: Não consideramos que se trate de uma guerra por procuração. Trata-se, antes de mais, de uma guerra popular de libertação nacional. No início da invasão em grande escala, as pessoas estavam a organizar-se, a fazer tudo o que podiam para resistir à ocupação, a falar com os soldados e as mulheres mais velhas a fabricar explosivos caseiros. Pessoas de todos os quadrantes da sociedade – pessoas LGBT+ e mulheres, artistas, trabalhadores e académicos – juntaram-se ao exército para lutar pelo direito dos ucranianos à autodeterminação.

Mia: Algumas pessoas da esquerda têm este falso pacifismo e aplicam uma lente ideológica na guerra que obscurece em vez de clarificar, mas que, de facto, obscurece a situação para as pessoas reais no terreno. É claro que os ucranianos têm o direito de se defender; eles são as principais vítimas deste conflito. Este rótulo de “guerra por procuração” não atribui qualquer agência aos próprios ucranianos. As pessoas que apelam a negociações e a um cessar-fogo têm de ser claras sobre em que base o fazer. O problema é que ninguém dita à Rússia o preço que esta deve exigir pela paz. Mas há quem na esquerda queira ditar condições aos ucranianos e dizer que têm de sacrificar a sua soberania nacional aceitando anexações. Porquê?

 

Qual é a força da extrema-direita na Ucrânia?

Vasylyna: A extrema-direita pode ainda ser uma ameaça para alguns indivíduos e movimentos sociais, mas, em geral, a sociedade ucraniana opõe-se a ideias autoritárias e chauvinistas, uma vez que essas ideias estão na base do imperialismo russo. Além disso, a influência e a visibilidade dos movimentos de extrema-direita na Ucrânia são menos fortes do que nas sociedades ocidentais, por exemplo, na Alemanha. Atualmente, os ativistas de extrema-direita não estão representados na grande política, mas temos de estar preparados para resistir aos interesses da extrema-direita no futuro. A história mostra que as guerras, infelizmente, formam uma base favorável à disseminação de ideologias de ódio. No entanto, a sociedade ucraniana demonstrou que é fortalecida pela sua diversidade e não pelo cultivo do nacionalismo étnico e do isolamento nacional.

 

A Ucrânia vai ganhar a guerra?

Vasylyna: Claro que sim! É a única forma de libertar o país. Temos de acabar com a invasão russa como uma prioridade. Precisamos definitivamente de mais armas, porque esta é uma luta real e estas coisas são importantes.

 

Como é que o movimento internacional de trabalhadores e a esquerda podem ajudar?

Vasylyna: Temos a Rede Europeia de Solidariedade com a Ucrânia, que se reúne semanalmente. Foram efetuadas visitas internacionais de delegados de diferentes países. Houve uma boa campanha para anular a dívida da Ucrânia e, recentemente, para libertar o ativista ucraniano dos direitos humanos Maksym Butkevych, que foi capturado pelas forças russas e torturado antes de ser condenado a 13 anos de prisão. Tudo o que as pessoas possam fazer para ajudar a divulgar informação sobre pessoas como Butkevych e pressionar a Rússia a libertá-lo seria útil. Gostaríamos muito que a esquerda internacional oferecesse à Ucrânia soluções progressistas que nos permitissem implementar uma reconstrução justa e assegurar um desenvolvimento sustentável. O povo da Ucrânia quer viver em paz e em condições sociais decentes e, para isso, é necessário eliminar a influência da oligarquia, transferir todos os recursos económicos para a propriedade pública e anular a dívida externa.

Mia: Apelamos aos camaradas de todo o mundo, mas especialmente no mundo ocidental, onde a política é mais aberta e onde se podem realizar mais debates públicos: não queremos que o regime russo ganhe; será um desastre para a Ucrânia e para a Rússia. Já houve um precedente de levantamento de sanções contra oligarcas russos na Europa (por exemplo, o chefe do Alfa Bank, Mikhail Fridman). Defendemos que as sanções contra os capitalistas russos devem ser mantidas e que o dinheiro deve ser canalizado para a resistência ucraniana, para as organizações da sociedade civil russa e para a reconstrução da Ucrânia após a guerra. Apelamos também à solidariedade internacional para com os presos políticos. Entre eles contam-se pessoas de esquerda, anarquistas, antifascistas e organizadores sindicais. Acolhemos com agrado ações diretas que nos ajudem a angariar fundos para ajudar os que precisam de asilo político e os que já estão presos. Os ativistas perseguidos escapam muitas vezes, mas acabam por fugir para locais como o Cazaquistão e outros países sob influência russa, onde são detidos e depois enfrentam a deportação para a Rússia. Ao mesmo tempo, o regime de vistos é muito restritivo e os procedimentos são muito morosos. As fronteiras terrestres com os países da UE estão efetivamente fechadas e o procedimento simplificado para a obtenção de vistos foi cancelado. É necessário apoiar aqueles que necessitam de asilo político – aqueles que se recusam a ser enviados para a guerra e fogem. É necessário exigir que a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu adotem uma abordagem unificada para proporcionar proteção internacional aos cidadãos russos que correm o risco de serem perseguidos.

 

Qual é a vossa opinião sobre esta reunião?

Vasylyna: Foi muito importante vir e ouvir os argumentos de diferentes organizações. Existem certamente alguns contributos com os quais a minha organização não concorda. Mas também estou interessada em discutir no Sotsialnyi Rukh como desenvolver as nossas políticas e ideias com base em algumas das coisas que ouvi.

Mia: Houve alguns aspetos positivos mas também alguns negativos. O lado positivo é que toda a gente está aberta a ouvir outras posições e quer saber mais sobre as posições do Movimento Socialista Russo e sobre o que se passa na Rússia. Mas a minha crítica é que nos limitamos apenas a trocar opiniões políticas; a esquerda passa tanto tempo a discutir conceitos como se algo é imperialista ou não. Mas onde está a solidariedade prática? Temos de fazer mais para partilhar o que estamos a fazer no terreno. Não podem ser apenas posições ideológicas.


Texto publicado originalmente na Anticapitalist Resistance. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

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