Despertando fantasmas de um passado tenebroso, a Alemanha volta a arrogar-se hoje a autoridade de definir quem é judeu. Quem o diz são judeus que vivem na Alemanha e se veem alvos de processos de deslegitimação a partir do momento em que criticam Israel. Entre Israel e judeus, a Alemanha escolhe o Estado sionista.
Para o filósofo e jornalista Martin Gak, “quando o Estado alemão se coloca em posição de me dizer quais devem ser as opiniões de um judeu e qual expressão de anti-semitismo condenar e qual proteger, vem à memória a célebre frase de Hermann Göring, um dos principais arquitetos do Estado policial na Alemanha nazi: Na Alemanha, sou eu quem diz quem é judeu”.
“O que está a acontecer é que o Estado alemão está a assumir o papel de ser mais judeu do que de os judeus,” denuncia Michael Sappir, judeu israelita co-fundador dos movimentos anti-sionistas Dissidência Judaica-Israelita em Leipzig e Israelitas pela Paz em Berlim. “A reviravolta é impressionante, é como se fosse a Alemanha a vítima do anti-semitismo,” acrescenta.
Desde que o parlamento alemão aprovou em 2019 uma resolução que condena como anti-semita o movimento BDS, que apela à pressão económica sobre Israel, diferentes instituições culturais no país têm anulado convites e cancelado eventos, tentando preventivamente evitar acusações de anti-semitismo.
Este fenómeno tornou-se ainda mais pronunciado depois de 7 de Outubro de 2023, com a Alemanha a impor uma proibição quase total dos protestos pró-Palestina. As autoridades alemãs iniciaram uma das repressões mais generalizadas à sociedade civil em décadas e emitiram proibições draconianas ao discurso e aos símbolos pró-Palestina. Uma campanha de repressão que atingiu artistas, editores, ativistas e académicos. Alguns deles judeus.
Quando, em Fevereiro, o cineasta israelita Yuval Abraham e o seu co-realizador palestiniano Basel Adra criticaram, nos seus discursos durante a entrega de prémios na Berlinale, a cumplicidade da Alemanha na guerra em Gaza e a violenta opressão dos palestinianos por parte de Israel, foram acusados de anti-semitismo pelo presidente da câmara de Berlim, Kai Wegner, da CDU.
“A Alemanha está a usar um termo que foi concebido para proteger os judeus como arma, não só para silenciar os palestinianos, mas também para silenciar os judeus e israelitas que criticam a ocupação”, disse então Yuval Abraham.
A Diaspora Alliance, uma organização internacional liderada por judeus que se dedica a desafiar a instrumentalização do anti-semitismo e a combater o que considera genuínos sinais de anti-semitismo, documentou 84 casos de deslegitimação ou cancelamento de eventos em 2023. A organização realça que em 25% destes incidentes os alvos foram indivíduos ou grupos judeus. Isto quando os judeus representam menos de 1% da população da Alemanha.
“Depois do Holocausto, a Alemanha precisava de um atestado de reabilitação moral e política da alma alemã,” ressalva Martin Gak. “O problema resolveu-se com o aparecimento do Estado de Israel em 1948. Os sionistas decidiram que Israel era a única voz autorizada a representar os judeus e assim a Alemanha obteve o tão ambicionado certificado kosher da reabilitação e redenção da sua alma moral e política.”

Daqui partiu-se para aquilo a que políticos alemães chamam responsabilidade especial da Alemanha para com Israel. Mas Gak denuncia uma nota falsa. No fundo, esta posição não tem nada a ver com os judeus e nem sequer com Israel. “Tem a ver com uma única coisa, que é a única coisa que preocupa os alemães: os alemães. Tudo isto é apenas sobre alemães,” sublinha.
O conceito da responsabilidade especial da Alemanha para com Israel consolidou-se na política alemã a partir do discurso de Angela Merkel no Knesset em 2008, quando a chanceler declarou que a segurança de Israel era a Staatsräson [razão de Estado] da Alemanha.
Em 12 de Outubro de 2023, Olaf Scholz evocou a formulação de Merkel em declarações no parlamento alemão, para dizer que "a segurança de Israel faz parte da razão de Estado da Alemanha. A nossa própria história, a nossa responsabilidade decorrente do Holocausto, torna nosso dever permanente defender a existência e a segurança do Estado de Israel."
Isto um dia antes do estudioso israelita de genocídio, Raz Segal, afirmar num artigo publicado na revista Jewish Currents que quando o Ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, anunciou no dia 9 de Outubro um cerco completo a Gaza, porque "estamos a lutar contra animais humanos, e iremos agir em conformidade", o sentido não foi menos explícito do que na ordem de extermínio [Vernichtungsbefehl] de 1904 do General Lothar von Trotha, o principal comandante militar no Sudoeste Africano Alemão, que levou ao genocídio Herero e Nama.
Gak é peremptório. “A Alemanha não permitirá que nenhum israelita ou judeu a impeça de defender Israel. Na verdade, não só a Alemanha levou a julgamento israelitas que manifestaram apoio ao movimento BDS nos últimos dois anos, mas tem vindo a prender um número significativo de judeus por terem assumido publicamente oposição a Israel.”
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Acrescenta que há neste momento na Alemanha purgas de pessoas que estão política e ideologicamente desalinhadas com a ideia alemã do que deve ser um judeu e do que é Israel. E acrescenta que na Alemanha de hoje Albert Einstein seria perseguido pelas suas críticas de Israel. “A sua oposição à ideia de um Estado nacional religioso, porque isso faria com que os judeus basicamente se degradassem em tudo aquilo contra o que lutámos, referindo-se aos nazis, teria colocado Einstein em linha de colisão com o Estado alemão, porque estas palavras seriam agora consideradas contrárias aos interesses da nação.”
“A Alemanha continua a não ser um país para judeus,” remata.
O estudioso australiano do genocídio Anthony Dirk Moses, disse em 2021 que na Alemanha de hoje corre o risco de ser excluído do discurso público quem questionar certos “artigos de fé”, como o apoio acrítico do Estado alemão a Israel, já que este constitui a base da identidade alemã do pós-guerra.
“O que é particularmente incrível é que Netanyahu e o Likud têm consequentemente fortalecido laços com a extrema-direita, apoiando activamente as suas campanhas políticas, muitas delas anti-semitas,” denuncia Martin Gak. E aponta o exemplo da campanha de Orban contra Soros, construída pelo antigo chefe de gabinete de Netanyahu, George Birnbaum.

Michael Sappir cresceu em Jerusalém Ocidental, numa família de descendentes de sobreviventes do Holocausto que foi sempre crítica à forma como Israel tratava os palestinianos. Foi a rejeição do sionismo e da narrativa sionista que finalmente os levou, a ele e aos seus pais e irmãos, a decidir deixar Israel.
Hoje observa com apreensão a deriva alemã, que considera muito perigosa para os judeus. “Especialmente perigosa porque os judeus estão uma vez mais a ser cinicamente usados, com muitos políticos alemães a evocar a protecção dos judeus para reprimir e expulsar muçulmanos e árabes,” sublinha.
Diz que na Alemanha, tal como noutros países, partidos que se afirmam opositores da extrema-direita assumem as mesmas políticas no que toca a imigrantes, em particular muçulmanos. Quando o pretexto usado é uma pretensa luta contra o anti-semitismo e a defesa dos chamados valores liberais, “a manobra passa por antifascismo,” assinala Sappir. “Mas na realidade a narrativa do combate contra influências externas que estão a corromper a nossa população, é exactamente uma retórica fascista, exactamente o tipo de conversa que tivemos sobre os judeus na Europa há cem anos.”
O apoio incondicional alemão a Israel tem outra consequência, alertou recentemente o sociólogo económico alemão Wolfgang Streeck num artigo publicado no European Journal of Social Theory.
Streeck constata que ao alinhar a memória pública dos crimes nazis com os interesses de Israel, a Alemanha empurrou para o esquecimento as vítimas do regime nazi que não tinham o lobby de um Estado a seu favor, sejam elas ciganos, deficientes, comunistas, homossexuais ou anti-sionistas.
O sociólogo acrescenta que embora originalmente a obrigação moral do Estado alemão depois do nazismo fosse entendida como apoiar igualmente o direito internacional e o Estado de Israel, agora a balança mudou a favor deste último e à custa do primeiro, passando de um posição universalista para uma interpretação particularista da dívida histórica da Alemanha.
Esta reformulação arrastou o Estado alemão para uma das decisões estratégicas mais importantes na sua aliança com Israel, assinala Streeck. Entre 1997 e 2000, a Alemanha forneceu três submarinos da classe Dolphin com capacidade nuclear à marinha israelita, e mais dois de uma versão atualizada (Dolphin II) em 2014 e 2015, seguindo-se outro em 2019. Outros três, ainda mais atualizados, estão programados para a ser entregues entre 2027 e 2029, igualmente financiados parcial ou inteiramente pela Alemanha.
Analistas militares têm afirmado que Israel fez adaptações na sua frota de submarinos que tornaram possível o lançamento de mísseis de cruzeiro capazes de transportar ogivas nucleares. A par da sua capacidade nuclear, que é segredo de Polichinelo, Israel conta portanto com uma frota de submarinos não localizáveis que podem disparar mísseis nucleares a partir de qualquer lugar do Mediterrâneo ou do Oceano Índico. Na opinião de Streeck, este é um factor a não descartar quando se quer perceber em que assenta o estatuto de impunidade de Israel e a atitude nonchalante do Estado sionista para com a lei internacional e os apelos a soluções diplomáticas.
Martin Gak é jornalista e filósofo com uma vasta experiência em radiodifusão, como produtor, apresentador, repórter e realizador. Foi correspondente para assuntos religiosos e editor e produtor do programa de política internacional Conflict Zone na Deutsche Welle, o canal de televisão internacional alemão. A sua formação académica inclui um doutoramento pela New School for Social Research de Nova Iorque.
Michael Sappir cresceu em Jerusalém Ocidental numa família de descendentes de sobreviventes do Holocausto. Mudou-se para Leipzig, na Alemanha, quando tinha 19 anos. Atualmente está sediado em Berlim, trabalhando como investigador e escritor.
Co-fundou na Alemanha dois movimentos anti-sionistas, a Dissidência Judaica-Israelita em Leipzig e Israelitas pela Paz em Berlim.