Manuel Sacristán Luzón (1925-1985) foi um dos mais importantes filósofos espanhóis do século XX e o mais proeminente introdutor do marxismo em Espanha. Líder do PSUC-PCE durante a ditadura franquista, foi expulso da Universidade de Barcelona em 1965 (e novamente em 1973); apesar disso, continuou a organizar o movimento antifranquista na universidade, trabalho que levou à fundação do Sindicato Democrático de Estudantes da Universidade de Barcelona em maio de 1966, um marco histórico na luta antifascista universitária espanhola. Além disso, durante a década de 1970, Sacristán promoveu uma renovação do projeto comunista, incorporando neste a ecologia, o feminismo e a luta pela paz. Este artigo aborda três aspetos: uma breve apresentação biográfica da sua figura, uma análise do seu legado na atualidade e um comentário à recente edição, que os autores deste artigo acabam de publicar, da transcrição inédita das suas aulas de Metodologia das Ciências Sociais de 1981 a 1982 na Universidade de Barcelona.
1. Biografia mínima: a forja de um intelectual militante
Nascido em Madrid, no seio de uma família de classe média, viveu em Barcelona a partir de 1939, após o fim da guerra. Durante a juventude, manteve ligações à organização juvenil Falange Espanhola (o pai ocupava cargos na organização). No entanto, durante os seus estudos em Direito e Filosofia na Universidade de Barcelona, sofreu uma profunda transformação política e intelectual que o levou a romper com o seu meio de origem – uma rutura nada fácil, repleta de riscos e confrontos.
A sua etapa formativa na Alemanha (1954-1956) seria decisiva. Com uma bolsa de estudo do Instituto de Lógica Matemática e Fundamentos da Ciência da Universidade de Münster, fundado por Heinrich Scholz, um mestre para ele, especializou-se em lógica e filosofia da ciência. Aí, não só se afirmou como um dos pioneiros da lógica formal em Espanha, como também se relacionou com o lógico comunista italiano Ettore Casari e aderiu ao Partido Comunista (PSUC-PCE), recusando um lugar de professor para regressar a Espanha e dedicar-se à luta antifranquista.
Quando regressou, ingressou nos quadros da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Barcelona e, três anos depois, foi transferido para a Faculdade de Economia após protestos do Bispado de Barcelona. O seu percurso académico foi marcado pela perseguição política: foi expulso da universidade em 1965 devido às suas atividades antifranquistas e só foi reintegrado definitivamente após a morte de Franco, tornando-se professor catedrático titular de Metodologia das Ciências Sociais em 1984, um ano antes da sua morte.
Sacristán desenvolveu um intenso trabalho político clandestino como dirigente do PSUC e do PCE durante aproximadamente 15 anos. Deixou a sua militância em 1978. Após os acontecimentos de 1968 (o Maio francês e a invasão da Checoslováquia), acreditando ser necessário repensar muitos aspetos da tradição.
A sua obra intelectual é tão vasta quanto multifacetada. Autor de obras fundamentais como Introdução à Lógica e à Análise Formal (1964) e As Ideias Gnoseológicas de Heidegger (1959), traduziu ainda mais de 80 livros de autores como Marx, Engels, Gramsci, Schumpeter, Lukács, Quine, Marcuse, Adorno e Galbraith. O seu projeto de editar criticamente as obras completas de Marx e Engels em 68 volumes foi apenas parcialmente realizado (foram publicados doze livros, incluindo a sua tradução dos dois primeiros livros de O Capital).
Nos seus últimos anos, Sacristán orientou o seu pensamento para o ecologismo político, o pacifismo e o antimilitarismo, tornando-se membro fundador do Comité Antinuclear da Catalunha e participando ativamente no movimento anti-NATO. Fundou também revistas como a Materiales e a mientras tanto (entre 1976 e 1971, foi editor da Nous Horitzons), que integraram a crítica ecológica e feminista na reflexão marxista.
Sacristán, que viveu 36 anos da sua vida sob a ditadura franquista, faleceu em Barcelona a 27 de agosto de 1985, com 59 anos, deixando um legado intelectual e político que continua a ser uma referência indispensável para o pensamento crítico contemporâneo.
2. Vigência de um legado: a atualidade do pensamento de Sacristán
A vigência do pensamento de Sacristán é palpável em múltiplas dimensões. Num contexto de crise civilizacional multidimensional (ecológica, social, política), a sua obra oferece chaves analíticas particularmente pertinentes.
Foi pioneiro na integração da crítica ecológica no marxismo, compreendendo antes de muitos que a crise ecológica exigia uma reformulação do projeto socialista. Em contraste com o marxismo produtivista, defendeu que a única possibilidade para a sobrevivência do planeta é uma transformação fundamental do nosso sistema económico, político, social e cultural, que se baseia precisamente no crescimento indefinido. Esta intuição, desenvolvida na década de 1970, é hoje central nos movimentos ecossocialistas contemporâneos.
O seu conceito de ecossocialismo (embora nunca tenha utilizado este termo) não implicava uma “direitização” do projeto comunista nem uma deslocação da classe trabalhadora enquanto sujeito político. Pelo contrário, entendia que a crise ecológica exigia a recuperação de uma conceção revolucionária do marxismo que questionasse os próprios fundamentos do sistema de produção capitalista.
Uma Filosofia da Ciência com consciência política
Outra dimensão altamente relevante é a sua filosofia da ciência politizada. Sacristán afirmava que “o mau da ciência atual é que é demasiado boa”, querendo dizer que é precisamente a bondade epistemológica da ciência contemporânea o que determina a sua perigosidade, sobretudo quando se desenvolve sob lógicas capitalistas.
Para ele, os problemas mais urgentes da ciência contemporânea, sem negar o seu interesse, não eram epistemológicos (como conhece a ciência), mas ético-políticos (as consequências sociais da ciência e da tecnologia, quem controla o seu desenvolvimento e quais os seus principais programas de investigação). Daí a sua afirmação de que a filosofia da ciência deve ter como foco central a política da ciência.
Esta perspetiva antecipava criticamente debates atuais sobre a inteligência artificial, biotecnologias e o controlo social digital. Já em 1979, alertava contra “as perspetivas de uma tirania abrangente abertas pelo Estado atómico ou pela engenharia genética” e advertia contra o “aparato repressivo incipiente de um novo tipo justificado pelo gigantismo do crescimento indefinido”. As suas premonições sobre o controlo social tecnológico são hoje surpreendentemente relevantes.
Praxis intelectual e compromisso ético
Talvez o mais atual do legado de Sacristán seja o seu exemplo de coerência entre pensamento e ação. Foi um intelectual rigoroso que nunca caiu na torre de marfim académica, mas antes compreendeu a filosofia como uma práxis transformadora.
A sua prática marxista continua a ser um programa válido para o pensamento crítico que procura não ser mera erudição, mas uma ferramenta de emancipação.
Sacristán encarnou o ideal de um intelectual orgânico, sem subordinação acrítica a qualquer linha política. O seu juízo independente e capacidade de autocrítica (afirmou um dia: “a crítica ao estalinismo é autocrítica, porque é insensato acreditar-se insolidário com trinta anos do próprio passado político”) fazem dele uma referência para uma esquerda que precisa de rever constantemente os seus pressupostos.
Vigência pedagógica e universitária
A sua crítica à universidade mercantilizada e a sua defesa de uma universidade democrática e crítica continuam plenamente relevantes. Sacristán denunciou desde cedo a crescente subordinação da universidade aos interesses do capital e a perda da sua função social crítica.
Face à formação de meros profissionais, defendia a formação de homens e mulheres cultos e cultas, com capacidade crítica e de compromisso social. O seu estilo pedagógico, baseado no diálogo socrático e no rigor conceptual, continua a ser um modelo contra a deriva burocrática e comercial da universidade atual.
3. Filosofia e metodologia das ciencias sociales III: um tesouro recuperado
O terceiro volume de Filosofía y metodología de las ciencias sociales (Montesinos, 2025), organizado pelos autores deste artigo, representa um contributo fundamental para o conhecimento da faceta docente de Sacristán e para a recuperação do seu legado. Esta obra faz parte de um projeto de pentalogia que procura compilar os materiais remanescentes dos cursos que Sacristán lecionou na Faculdade de Economia da Universidade de Barcelona.
A singularidade deste terceiro volume reside no facto de, pela primeira vez, ter sido publicada uma transcrição das aulas de Sacristan correspondentes ao ano letivo de 1981-1982. Trata-se de um material excecional que permite aceder ao Sacristan professor em ação, capturando não só o conteúdo das suas explicações, mas também o seu estilo pedagógico, as suas digressões e a sua interação com os alunos.
A edição inclui a transcrição das aulas (aproximadamente 65% do livro), bem como um aparato crítico composto por notas editoriais que contextualizam e explicam referências, e notas complementares que permitem observar como Sacristán entendia certos conceitos a partir dos seus outros textos. Juntamente com esta transcrição das suas aulas, são também oferecidos alguns materiais inéditos, ou de muito difícil acesso hoje em dia, como esquemas de cursos (o dedicado ao Sistema Lógico de John Stuart Mill, por exemplo), conferências e guiões, prólogos, notas de leitura, recensões e textos relacionados com o mientras tanto, a revista que mais fez sua. Um índice de nomes e uma bibliografia essencial concluem o ensaio. A estrutura da obra permite tanto a leitura linear como a consulta temática, facilitando o acesso às ideias de Sacristán a partir de múltiplas entradas.
A transcrição acima referida revela aspetos altamente relevantes de Sacristán, incluindo a sua extraordinária capacidade pedagógica para explicar temas complexos com clareza; a sua erudição multifacetada, capaz de ligar a filosofia da ciência, a literatura, a política e a história; o seu estilo dialógico que fomentava a participação dos alunos; e a sua linguagem oral, de grande beleza e precisão, comparável à dos seus discípulos como Francisco Fernández Buey ou Antoni Domènech.
Nas suas aulas, Sacristán demonstrava uma rara capacidade de conectar problemas abstratos com questões políticas concretas, bem como de relacionar teorias científicas e filosóficas com movimentos artísticos e literários. Para dar apenas um exemplo, ao discutir as reações culturais à ciência, associa Mary Shelley (autora de Frankenstein) com o movimento ludita e recorda alguns versos, provavelmente de Percy Bysshe Shelley, marido de Mary, que ele próprio leu rabiscados nas paredes de uma cela da esquadra de Barcelona durante uma das suas detenções.
Pode também ler-se como, nas suas aulas, explicava a já referida mudança em direção à política da ciência que caracterizou o pensamento de Sacristán durante estes anos, onde emergiu aquilo a que Fernández Buey chamou a transição para uma conceção autocrítica da ciência, ou um “racionalismo bem temperado”, procedente da sua preocupação com as consequências sociais da ciência e da tecnologia sob o modo de produção atual. As suas aulas mostram para além disso o seu interesse pelas ciências sociais, como a sociologia, a matemática, a historiografia e a antropologia: esta última destaca-se pela sua compreensão do ser humano, dentro de certos quadros civilizacionais, como a “espécie da hybris”, tendendo para o excesso, a desmesura e a destruição do seu meio ambiente, bem como pela sua atenção às críticas culturais à ciência.
Este volume insere-se no centenário da obra de Sacristán (1925-2025), que motivou inúmeras iniciativas comemorativas. Não se trata de um livro de divulgação, mas sim de um contributo de investigação que visa alargar a nossa compreensão da sua obra.
Os editores dedicaram anos ao estudo e à divulgação da obra de Sacristán. O nosso trabalho insere-se num esforço coletivo para resgatar do esquecimento um pensador que foi marginalizado tanto pelo meio académico como por uma parte da esquerda oficial.
A publicação coincide com um interesse renovado pelo pensamento de Sacristán, particularmente em contextos ibero-americanos onde o seu marxismo aberto e não dogmático é valorizado. Acreditamos que representa um contributo importante para as novas gerações que descobrem em Sacristán um pensamento crítico capaz de iluminar os desafios do século XXI.
Conclusão: a vigência de um clássico
Entrevistado em 1977 pelo Diario de Barcelona, Manuel Sacristán comentou que Gramsci era um clássico e que, como todos os clássicos, merecia ser lido para sempre e nunca passar de moda. Hoje, poderíamos aplicar a mesma ideia ao próprio Sacristán. O seu centenário não é o resgate arqueológico de um pensador esquecido, mas antes a reivindicação de um arsenal conceptual vivo e relevante para enfrentar os desafios contemporâneos.
O seu comunismo ecológico, o seu pacifismo lúcido, a sua crítica à tecnociência capitalista, a sua defesa de uma universidade democrática e o seu exemplo de coerência ética e intelectual constituem um legado que continua a desafiar-nos e a inspirar as novas gerações de pensadores críticos e ativistas transformadores.
Texto publicado originalmente no CTX.