Segundo o jornal Kyiv Independent, as manifestações de 30 de julho foram dirigidas sobretudo ao parlamento para exigir que os parlamentares decidissem revogar a polémica lei. De acordo com o jornal, os manifestantes tinham-se abstido, em grande parte, de entoar palavras de ordem hostis a Zelensky, que, contudo, tinha sido muito criticado nos primeiros dias dos protestos. Portanto, neste momento, são os parlamentares e o governo que estão na mira do movimento de protesto democrático. O bloco maioritário do partido de Zelensky está também em vias de se desmoronar sob o impacto desta mobilização popular, na qual os jovens desempenham um papel muito importante.
Como interpretar o facto de Zelensky, que tinha investido todo o seu peso político nesta decisão, não ser (mais) diretamente posto em causa? Sem dúvida porque os manifestantes se apercebem da dupla realidade em que o país se encontra: por um lado, Zelensky, cujas políticas neoliberais e tendências autoritárias são percebidas como prejudiciais por uma parte da população e que acaba de ser chamado à ordem; e do outro, Zelensky, o “chefe de guerra”, a “alma da resistência” à agressão russa, em quem os ucranianos têm depositado a sua confiança.
Este é, sem dúvida, um dos elementos políticos essenciais do momento que acaba de começar com o tiro de advertência que abalou Kiev. De certa forma, tal é o significado da declaração de um manifestante, recolhida pelo Kyiv Independent: “acredito que as autoridades vão a partir de agora dialogar mais com a população, depois de terem constatado a força da sua reação”. Ou a de outro que declarou em Suspilne: “O país está a ir na direção errada, é por isso que as pessoas estão a sair à rua para o colocar de volta no caminho certo. Esperamos que as autoridades escutem a voz do povo”. Ou ainda: “É importante para nós vivermos num Estado de Direito. A corrupção está a destruir o país por dentro, enquanto que já estão a tentar destruí-lo a partir de fora”.
Para mim, esta atitude faz-me lembrar – numa situação obviamente completamente diferente – o que os chilenos diziam sobre o governo de Allende: “É um governo de merda, mas é o nosso governo”.
Os campistas e outros zelotas, como o deputado francês Legrave, podem denunciar apenas Zelensky como o flagelo das liberdades democráticas; outros podem esquecer, mais ou menos intencionalmente, que a mobilização democrática ucraniana está a ocorrer sob bombardeamentos russos e apesar da lei marcial que proíbe as manifestações.
Pela nossa parte, saberemos, juntamente com a esquerda ucraniana e o movimento social, como caminhar com as duas pernas, como temos feito desde o início da guerra em grande escala.
Não haverá vitória sobre o imperialismo russo sem democracia, e não haverá democracia em caso de vitória do imperialismo russo.
Patrick Silberstein é membro da Rede Europeia de Solidariedade com a Ucrânia e das Brigadas de Solidariedade Editorial.
Publicado originalmente na página do Europe Solidaire et Sans Frontières. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.